Muito antes de “Sozinho em Casa” ou “O Amor Acontece”, antes da saga “O Senhor dos Anéis” e de qualquer “Harry Potter”, um título tornou-se obrigatório para o Natal: “A Maravilhosa História de Charlie”, o musical de 1971 que marcou a carreira de Gene Wilder como candyman, a fazer sonhar gerações.

A adaptação da história de Roald Dahl para o cinema é bastante conhecida: Charlie (Peter Ostrum) é a quinta criança a ter a sorte de encontrar um bilhete dourado para visitar a fábrica onde Willy Wonka (Gene Wilder) produz chocolates e doces, misteriosamente e sem qualquer ajuda externa. Charlie, que vem de uma família muito pobre, distingue-se das outras crianças, cada uma a personificar um vício. Willy Wonka desvenda o mundo mágico da fábrica aos seus convidados e acaba por escolher Charlie para a herdar, quando já não puder encarregar-se de tudo.

Neste enredo, não há vilões nem volte-faces dramáticos. Não há efeitos especiais mirabolantes. Tudo fica entregue à imaginação.

A world of pure imagination. Pura imaginação.

A filha do realizador Mel Stuart sugeriu-lhe que transformasse o livro em filme. Stuart e o produtor David Wolper apresentaram a proposta à Quaker Oats, que, a preparar-se para lançar um novo produto, se deixou convencer a apostar num chocolate. A nova tablete de chocolate viria a chamar-se Wonka e a manobra publicitária rendeu três milhões de euros para financiamento do projeto. (Por ironia do destino, o chocolate Wonka acabaria por ser um fracasso comercial devido a um problema na sua composição; não vingou, mas transformou o título original da história, que passou a chamar-se “Willy Wonka & The Chocolate Factory” em vez de colocar Charlie no título.)

Gene Wilder foi escolhido para o papel principal, disputado por figurões como Fred Astaire ou John Cleese, dos Monty Python. Willy Wonka não poder ter ido parar a outras mãos. Wilder deu-lhe um ar menos excêntrico e mais afável.

O ator fez questão de aparecer pela primeira vez em cena como um Willy Wonka frágil, a coxear perante todo o público que aguardava a abertura da fábrica. Segundos depois, deixa-se cair numa cambalhota que desmascara o figurino. Wilder queria que a manobra criasse a ilusão fundadora da sua personagem e semeasse nos espectadores a dúvida constante: estaria a mentir ou a dizer a verdade?

Gene Wilder (ator e realizador americano)

A ironia que Willy Wonka usa ao longo do filme deriva desse primeiro encontro com a personagem, mas sabemos que não é com maldade que comenta o desaparecimento das crianças que prevaricam na fábrica ou quando canta que não há maneira de saber para onde o barco desgovernado os está a levar. Na verdade, Gene Wilder faz de Willy Wonka um menino de olhar inocente, que ainda não perdeu a esperança na humanidade. É o candyman que providencia magia em forma de chocolate – ao alcance da imaginação. E essa imaginação salta das músicas para toda a experiência do filme, como acontece com as crianças da equipa, que só viriam a ver a sala de chocolate, pela primeira vez, quando começam a filmar aí. Mel Stuart quis captar os segundos de espanto inicial das crianças perante a cascata do rio de chocolate, cogumelos gigantes feitos de açúcar, flores que são chupa-chupas, bagas comestíveis...

The candyman can, ‘cause he mixes it with love
and makes the world taste good.

A magia estava em cada pormenor. Durante as filmagens, Wilder levava Peter Ostrum a comprar um chocolate, que partilhavam no caminho de regresso ao cenário das filmagens (em Munique, na Alemanha). A ligação que os dois criaram nos bastidores forjou-se na mestria de Wilder como ator mas também na bondade que está espelhada nos seus olhos. A verdade é que se diz que Wilder não gostava de ter Wonka como a sua personagem mais conhecida, mas foi possível vê-lo reconhecer que este papel é um legado incrível.

O verdadeiro clássico de Natal

O remake de 2005 perde a essência do original. Johnny Depp mantém a excentricidade de Wonka mas não capta a inocência com que Gene Wilder cunhou a personagem. E as escolhas de Tim Burton cortam a imaginação que o filme original pretende pôr a fervilhar, porque entrega um mundo encantado já pronto a consumir, com cenários monumentais e um único Oompa Loompa clonado por computador à escala de um pequeno exército.

Já o filme de 1971 carrega nos sinos e violinos das músicas e segue a tradição do cinema americano antigo, substituindo apenas a narrativa romântica por uma história de valores familiares, em que a honestidade é recompensada. O filme foi feito para os pais e não para as crianças e talvez tenha sido por isso que marcou gerações atrás de gerações. É assim com o cinema que faz sonhar. E este filme tem a capacidade de o conseguir com pouco mais do que a imaginação. Já não se fazem filmes assim.

A receita está escrita e é suficiente para repor “A Maravilhosa História de Charlie” como o clássico filme de Natal. Além disso, terá estreado em Portugal na quadra natalícia daquele ano de 1971. Não poderia haver melhor homenagem ao ator Gene Wilder, que morreu em 2016, vítima de Alzheimer.

No ano seguinte, a Warner Bros permitiu que a cena em que Wilder canta “Pure Imagination” fosse usada por uma associação que se dedica aos cuidados de doentes com Alzheimer e à cura da doença. A campanha descreve os efeitos do Alzheimer, mas podia também resumir o risco de uma qualquer vida moderna onde a imaginação se apagou.

Come with me and you'll be
in a world of pure imagination.

Veja mais no blog de Filipa Moreno.