O 17.º festival DocLisboa, que decorre em outubro, inclui uma “programação urgente” para “debater, pensar e contar armas para uma resistência ativa contra o desmantelamento da democracia no Brasil”, anunciou hoje a organização.

Num comunicado hoje divulgado, no qual repudia ações recentes do governo brasileiro na área da Cultura, a organização do DocLisboa declara apoio a “todos os colegas brasileiros” e anuncia “uma programação urgente que permitirá debater, pensar e 'contar armas' para uma resistência ativa contra o desmantelamento da democracia no Brasil”.

A equipa do festival refere assistir “chocada e com um sentimento de revolta” ao que considera serem “ataques feitos pelo governo do Brasil” aos realizadores, programadores, festivais e a “todo o cinema independente brasileiro”.

Para o DocLisboa, “é evidente um programa de eliminação da diversidade e da liberdade, visando uma arte que é, pela sua natureza, popular e democrática: o cinema”.

A equipa do festival lembra “casos de censura”, a realização recente de um ciclo de cinema militar na Cinemateca brasileira, em São Paulo, e os cortes “inexplicáveis à Ancine”, a agência que sustenta a produção cinematográfica, no país, “agora suspendendo os apoios atribuídos aos realizadores com filmes programados em festivais internacionais”.

No âmbito da “programação urgente”, serão exibidos no DocLisboa filmes do realizador Eduardo Coutinho: “Cabra Marcado para Morrer” (foto), “que transporta a memória das lutas campesinas, mas também a memória do golpe de 64 e da subsequente ditadura”, e “Últimas Conversas”, filme póstumo terminado por Jordana Berg, no qual Eduardo Coutinho conversa com alunos da rede pública de escolas do Rio de Janeiro.

Anteriormente, o DocLisboa tinha já sido anunciada a exibição de “Banquete Coutinho”, de Josafá Veloso, “que parte de uma entrevista ao realizador realizada em 2012", e de "uma série de arquivos da sua obra, para pensar a importância de Coutinho hoje, a sua memória como resistência necessária”.

A “programação urgente” inclui também o filme “Chico: Artista Brasileiro”, de Miguel Faria Jr., filme que retrata a vida e obra do músico e escritor Chico Buarque, e que foi recentemente retirado do programa de um festival Uruguai, por pressão da embaixada brasileira naquele país.

Além disso, como já tinha sido anteriormente anunciado, serão exibidos no DocLisboa “Chão”, de Camila Freitas, “um pungente retrato” da luta do movimento dos Sem Terra, e “O Último Sonho”, de Alberto Álvares, “uma invocação da memória do líder Guarani Wera Mirim”.

Com os filmes brasileiros selecionados para a 17.ª edição, a organização do DocLisboa pretende “relembrar a força do cinema brasileiro, não só na história como hoje, partilhar este momento de dificuldade com todos os que querem resistir, e dizer ao Governo do Brasil que amanhã vai ser outro dia - um dia construído pelos que respeitam os valores democráticos e a liberdade”.

O DocLisboa, sublinha a equipa que o organiza, “é e será sempre um espaço seguro para aqueles que trabalham por um mundo mais livre”.

A suspensão da Agência Nacional do Cinema do Brasil (Ancine) ao apoio financeiro à participação de realizadores brasileiros em festivais estrangeiros, anunciada esta semana, inclui seis festivais portugueses: Festival de Cinema Luso-Brasileiro de Santa Maria da Feira (abril), IndieLisboa (maio), FestIN Lisboa (maio), Curtas Vila do Conde (julho), Queer Lisboa (setembro) e DocLisboa (outubro).

Cíntia Gil, da direção do DocLisboa, disse à agência Lusa, na altura do anúncio, que o festival - cujo programa ainda não foi anunciado na totalidade - iria tentar "que este claro ataque ao cinema brasileiro" não passasse despercebido nesta edição do DocLisboa.

Esta suspensão da Ancine surgiu semanas depois de o Presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, ter afastado o presidente da Ancine, Christian de Castro, por decisão judicial.

Homóloga do Instituto do Cinema e Audiovisual português, a Ancine é uma agência reguladora que tem como funções o fomento, a regulação e a fiscalização do mercado do cinema e do audiovisual no Brasil.

Jair Bolsonaro admitiu em julho a possibilidade de extinguir a Ancine, caso não a possa usar para impor "filtros" nas produções audiovisuais e, em agosto, acrescentou que desejava um presidente na agência com perfil evangélico.

Na semana passada, o ministro da Cidadania do Brasil, Osmar Terra, disse que o novo diretor da Ancine terá um perfil conservador, "tal como o atual Governo".

O ex-presidente da Ancine, Christian de Castro, foi substituído temporariamente no cargo por Alex Braga Muniz, não tendo sido ainda anunciado o novo responsável oficial.

Cíntia Gil considerou que estas mudanças na Ancine são "mais uma peça concertada para destruir toda a evolução no acesso à cultura e na diversidade artística", e para a construção de uma ditadura no Brasil.