O filme, assinado por Luísa Sequeira e Luísa Marinho, estreia-se no domingo no festival DocLisboa, e foca-se no processo de criação de "Novas Cartas Portuguesas" (1972), contado pelas suas autoras - Maria Teresa Horta, Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa -, relembrando o processo judicial de que foi alvo e o impacto internacional que causou.

Luísa Sequeira explicou à agência Lusa que a ideia do documentário partiu, há dez anos, da poeta e investigadora Ana Luísa Amaral, que, na altura, preparava uma edição anotada da obra literária. O filme só agora foi terminado por questões de produção e orçamento, e é por isso uma coincidência estrear-se no ano do cinquentenário do livro.

Para contar a história de "Novas Cartas Portuguesas", e perceber ainda hoje a importância da obra, as realizadoras filmaram entrevistas às três escritoras - conduzidas por Ana Luísa Amaral -, e incluiram ainda depoimentos do jornalista Adelino Gomes e da atriz e encenadora brasileira Gilda Grillo, peça fundamental na divulgação internacional do livro.

No filme, Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa contam que, durante nove meses, se encontraram todas as semanas para discutir ideias e lerem em voz alta aquilo que escreviam, sem censuras e sem pensarem que dali sairia um livro feminista.

Maria Teresa Horta diz que o livro descontrói a ideia de solidão da escrita, Maria Isabel Barreno admite que não esperava que houvesse um processo judicial e Maria Velho da Costa lamenta a sensação final de rutura, causada pelo "estado de passionalidade com o trabalho".

"Novas Cartas Portuguesas" consiste em 120 textos que entrecruzam cartas, poemas, relatórios, textos narrativos, ensaios e citações, escritos coletivamente por aquelas que chegaram a ser definidas como “três aranhas astuciosas”. Apenas se sabe que o primeiro texto foi escrito por Maria Isabel Barreno, já que as autoras se recusaram sempre a revelar quem escreveu o quê.

Partindo das cartas de amor dirigidas a um oficial francês por Mariana Alcoforado, as três escritoras - que ficaram conhecidas como "as três Marias" - denunciaram a guerra colonial, as opressões a que as mulheres eram sujeitas, um sistema judicial persecutório, a emigração e a violência fascista.

No filme, recordam ainda que a obra foi banida pela ditadura salazarista e que foram levadas a julgamento - relatam a comicidade de uma das sessões -, mas a censura interna não foi suficiente para travar a divulgação internacional do livro. As autoras acabariam absolvidas já depois do 25 de Abril de 1974.

No documentário é ainda folheado um dossier, encontrado nos arquivos do Ministério dos Negócios Estrangeiros, com dezenas de recortes e cartas de embaixadores e diplomatas a darem conta da repercussão que o livro estava a ter no estrangeiro.

"É uma obra rizomática, com vários desdobramentos, mas este filme tenta invocar um episódio da nossa História recente, em que houve uma grande solidariedade, sororidade por parte de movimentos internacionais", sublinhou Luísa Sequeira.

Além de ser uma obra "muito rica, pelo formato, pelo seu conteúdo, pelas diferentes cartas, pela forma como foi realizado, pela diluição da autoria, que as autoras assim decidiram", "Novas Cartas Portuguesas" tem uma potência tal que "ainda hoje estamos a falar dele", disse a realizadora.

E falar-se de "Novas Cartas Portuguesas" não significa que, 50 anos depois da sua publicação, tenha hoje muitos leitores.

"É uma obra que é muito discutida na academia, no âmbito académico, mas acho que seria fundamental que as gerações mais novas lessem e soubessem do que se passa", considerou Luísa Sequeira, justificando que o livro "é cada vez mais atual".

"Ainda estamos numa estrutura altamente patriarcal e capitalista. Nesta altura em que os direitos das mulheres estão em causa (...) é importante olhar para a História com um outro olhar. A História não está cristalizada", disse.

"O que podem as palavras", que as realizadoras querem que tenha estreia comercial em 2023, é também um dos últimos documentos a reunir testemunhos contemporâneos de Maria Teresa Horta, Maria Isabel Barreno (1939-2016), Maria Velho da Costa (1938-2020) e Ana Luísa Amaral (1956-2022).

Das quatro escritoras, apenas sobrevive Maria Teresa Horta, com 85 anos.

"O que podem as palavras" estreia-se, numa sessão única, no domingo, na Culturgest, em Lisboa.