É a longa história de um movimento que começou em alguns locais específicos do norte do país e depois cresceu. O documentário "Não Consegues Criar o Mundo Duas Vezes" mostra a história de miúdos, as suas convivências em locais específicos do grande Porto e gosto por uma música ainda desconhecida que vinha dos Estados Unidos, o hip hop. Vencendo resistências, nomes como os Mind da Gap (foto em cima) e Dealema (foto em baixo) inscreveram-se no panorama musical português.

Francisco Noronha e Catarina David contam essa história. O filme tem sessão única no festival IndieLisboa esta quinta-feira (3).

SAPO Mag: Ao longo do filme dão muita relevância aos espaços, aos locais onde se passaram as ações. A ideia é demonstrar que essas manifestações culturais estão profundamente ligada às paisagens humanas de um determinado local?

Francisco Noronha: Sim, essa ligação é evidente, é fundamental, ou seja, não se podem separar as duas coisas, sobretudo num tempo como o de criancice e de juventude como o que é retratado no filme. Quando somos miúdos toda a gente passa por isso, habitamos determinados locais e até há alguns nos quais passamos a maior parte do dia em vez de ser em casa. É um hábito bonito e se calhar nunca mais vamos fazer isso, passar assim tanto tempo na rua. Nesse sentido, sem dúvida que as duas coisas andam sempre ligadas, o filme é um documentário sobre o Porto, Matosinhos, Gaia e, ao mesmo tempo, sobre locais mais específicos dentro dessas cidades, como a Câmara Municipal de Matosinhos e o espaço à sua volta, as ruas de Gaia, à volta do Hard Club, Cedofeita e outras ruas da baixa do Porto.
Catarina David: As ruas do Porto marcam muito isso, marcam o espírito onde as pessoas convivem, falam todos os dias e se identificam. Traz muitas memórias pessoais e vivências nesses próprios sítios.

SAPO Mag: Ainda sobre a questão do espaço, os vossos entrevistados destacam frequentemente o facto de serem do Porto e das diferenças em relação a Lisboa.

CD: É verdade que é preciso reforçar isso, falamos no filme sobre haver uma escola do Porto, um sotaque de lá. Quanto temos cidades com uma vida bastante diferente isto reflete-se nas suas pessoas, nos “rappers” e em todos os envolvidos nos estilos musicais que representam esse local. No Porto acaba por haver muito a necessidade de se afirmar um espírito “tripeiro” e de local, do estilo "isto é o nosso espaço, o nosso terreno". Lisboa é muito maior, muito metropolitano, por isso não existe essa coisa tão vincada. No Porto o grupo que começou isto lá acabou por ter esse convívio – algo que também se reflete nas músicas.
FN: Essas diferenças mostram a riqueza de um país, os seus dialetos, as suas cores, são saudáveis. Na altura eram maiores, mas hoje estão mais esbatidas como se percebe ao longo do filme. Há uma música em que os Mind da Gap falam sobre isso, "Norte Sul" que é lançada logo no "Sem Cerimónias", que é o primeiro álbum deles. Aqui já há, precisamente, um espírito de encontrar amizades e "boa onda" entre pessoas de sítios diferentes.

SAPO Mag: O hip hop e o rap tem uma grande tradição de cultura de rua nos Estados Unidos – ligados também a outras formas de expressão, como o grafite e o "breakdance". Em Portugal não havia nada assim até os artistas que retratam começarem a atuar. O título do vosso filme reflete esse momento criador, que não pode ser reinventado "tal como o 'big bang'"...

CD: Era não só uma coisa de memória, de gravar uma coisa importante como o início de um estilo musical importante para a malta jovem. Este momento criador era muito importante para quem estava envolvido nele. Eram miúdos que estavam a conhecer um estilo novo que vinha dos Estados Unidos, com pouco acesso a ele, o que também lhe conferia um ar misterioso, dava mais vontade de fazer pesquisas sobre isso e de partilharem com quem iam encontrando e que tinham os mesmos gostos. Acabavam por ter um "mini" movimento, uma "mini" cultura, à medida que iam conhecendo pessoas. Isso foi bom de se mostrar no documentário, eles arranjarem os primeiros espaços para tocarem, para pintar, a descobrir que aquela pessoa está a usar as mesmas roupas que eu. É uma construção de um grupo, de um género musical.
FN: A acrescentar que a ideia do "big bang" é uma ideia bonita e que também aparece no filme. Por isso também no nosso título procuramos recuar até esse momento fundador, mesmo que, historicamente, ele nunca possa ser extremamente exato. O título simboliza que não se podem repetir as coisas que acontecem em determinados momentos e elas são bonitas por isso mesmo. Não quer dizer que o que vem depois seja pior ou desiluda, simplesmente houve momentos que foram o início e que têm a sua própria beleza.

SAPO Mag: Também em Portugal havia uma diferença grande em relação aos Estados Unidos. A questão racial era menos importante e não era um movimento do gueto, eram jovens brancos, de classe média. A certa altura no filme alguém diz que às tantas já se rimava sobre "outros planetas" porque os temas dos problemas do bairro não eram tão relevantes...

FN: É uma questão interessante que se prende essencialmente com o facto de, no Porto, ao contrário de Lisboa, existir uma presença mais reduzida de comunidades africanas oriundas das antigas colónias portuguesas. Lisboa teve sempre mais presente essas comunidades que hoje já vão em duas ou três gerações; no Porto só começou esse movimento mais tarde. Em Lisboa o hip hop tem desde o início a grande marca da cultura negra, que pessoalmente admiro, que mais oiço. Por outro lado, mesmo sendo feito por um número maior de pessoas brancas no Porto, ele não deixa de ser um rap consciente, de rua, combativo, de intervenção. Também existe um olhar sobre os bairros sociais, tal como em Lisboa.
CD: Ao mesmo tempo que é feito por vozes representativas da classe média, são vozes representativas de gente que vive no bairro, são pessoas que passam essa mensagem cá para fora.

SAPO Mag: Por que acham que houve tanta resistência no início aos Mind da Gap e ao rap/hip hop português?

FN: O hip hop era um género novo e havia um grande preconceito – como ainda hoje há. Ainda há pouco tempo um músico português muito conhecido deu uma entrevista em que falava do rap como uma expressão artística que não era música. Este tipo de coisas hoje ainda se dizem, por incrível que possa parecer. Há 20 anos era mais difícil não só em Portugal, mas em toda parte, mesmo em países como Estados Unidos, Brasil, França. Os Mind da Gap sofreram esse preconceito porque, além disto, eram do Porto – numa altura onde imprensa e a antiga vanguarda estava representada em Lisboa. De qualquer forma, são águas passadas.

SAPO Mag: Em relação à aceitação posterior, para quem cresceu nos 80 e 90 há um certo desapontamento com o facto de que as tendências musicais e as atitudes que se interligavam com elas diluíram-se num "mainstream" globalizado. No final alguém pergunta: "hoje o hip hop está massificado. Mas não era isso que nós queríamos???". Como vêem essa relação entre identidade e massificação na cultura atual, do hip hop em particular?

FN: É algo comum a vários fenómenos, comum a toda a arte. Desde adolescentes que achamos que só nós gostamos e partilhamos algo com os amigos e, passado um mês, quando já toda a gente gosta, vamos começar a perder a identificação pessoal. É normal. Existe uma massificação do hip hop, que é hoje a música mais ouvida em "streaming" no mundo. As vendas ultrapassaram as do rock pela primeira vez na história norte-americana. É uma boa frase do filme essa que menciona. A massificação tem sempre esses dois lados – por um lado pode entristecer-nos um pouco e por outro lado tem a vantagem de podermos levar as coisas de que gostamos a todo o lado e mostrar a mais pessoas. Posso entristecer-me com uma situação ou outra, mas vivo bem com a massificação. Gosto do rap e se posso ouvi-lo em vários sítios fico feliz por isso.
CD: É uma questão complicada porque realmente há um aspeto positivo e outro negativo dessa massificação. Por um lado é bom sair à noite, por exemplo, e ouvir a música com que se identifica; por outro lado é uma quase banalização que parece tirar um bocado da magia da cultura e do movimento e da forma como as pessoas se agarravam ao hip hop no início. Essa identificação com o estilo, com o movimento, com o grafite, o "breakdance" e o DJ acaba por perder um pouco o encanto com a banalização.

SAPO Mag: Como foi a produção do filme? Levaram muito tempo a reunir as possibilidades de entrevistar estes músicos todos?

FN: O mais importante é que é um filme produzido inteiramente por nós, somos realizadores independentes. Demorámos cerca de um ano e meio entre começar e acabar – o que faz algumas pessoas ficarem surpreendidas. Neste período fizemos mais de 40 entrevistas, recolhemos material de arquivo, selecionámos material, passámos horas e horas a ouvir pedaços de áudio e a selecionar imagens para a montagem do filme. Foi um processo árduo, trabalhoso, muito cansativo, sendo que nenhum de nós esteve a trabalhar exclusivamente no filme. Temos outros trabalhos, outros projetos, fomos fazendo o filme conjugando com as nossas outras atividades, o que reduz o tempo de disponibilidade. Batalhámos muito para conseguir fazer o que fizemos. Mas isso também traz uma certa sensação de aragem, de liberdade e de amor feito por aquilo. Muito trabalhoso mas muito apaixonado.
CD: Nós temos este amor ao hip hop e acabamos por fazer isto com uma vontade muito grande e mesmo com essa luta que o Francisco mencionou, apesar disso acabamos por estar muito apegados a este projeto. Em relação às entrevistas destas pessoas, tivemos uma receção muito boa, achamos que é de valorizar a recetividade dos artistas para nos responderem e só nos apetecia ficar horas a falar com eles. Por isso ficámos com muito tempo de filmagens, o que tornou a edição muito complexa.

SAPO Mag: Por que acharam que era o momento de se fazer um retrato sobre o rap/hip hop no Porto?

FN: Todos os momentos são bons, não houve razão específica, temporalmente falando, foi no ponto da nossa vida em que entendemos que tínhamos reunindo as condições, o entusiasmo e a vontade para nos juntarmos e levarmos o projeto para a frente.
CD: Há uma vantagem, que nem foi escolha nossa: como é um assunto com o qual temos um certo à vontade, conseguimos ter alguma proximidade em termos de memória, de arquivo, de fotografias e de coisas que os envolvidos nos poderiam dar e que se calhar ficariam perdidas se fosse daqui a uns anos. Estão mais frescas na memória e foi mais fácil para eles passarem-nos isso agora.

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