A primeira estrela de cinema negra americana, o lendário e pioneiro Sidney Poitier, faleceu na quinta-feira. Tinha 94 anos.
Sem informar a causa, a notícia foi confirmada pelo Ministro dos Negócios Estrangeiro das Bahamas, país de onde era natural e que chegou a representar como embaixador no Japão entre 1997 e 2007.
Com mais de 50 filmes, muitos deles como protagonista, Sidney Poitier fez história em 1963, quando os EUA viviam as tensas convulsões raciais ligadas ao Movimento dos Direitos Civis, ao tornar-se o primeiro ator negro a receber o Óscar de Melhor Ator com "Os Lírios do Campo".
Sem a sua carreira, o seu exemplo cívico e este momento pioneiro na história de Hollywood, teria sido muito mais difícil o caminho para o estrelato de Denzel Washington, Whoopi Goldberg, Oprah Winfrey, Morgan Freeman, Jamie Foxx, Halle Berry, Viola Davis ou Will Smith.
Em 2002, tornou-se igualmente o primeiro artista negro a receber um Óscar honorário pelo conjunto da obra, onde se destacam títulos como "Sementes de Violência", "Os Audaciosos" (a primeira nomeação para as estatuetas douradas), "Porgy e Bess", "Gigantes do Mar", "O Ódio Que Gerou o Amor", "Uma Réstia de Azul", "No Calor da Noite" (Óscar de Melhor Filme), "Adivinha Quem Vem Jantar", "Dois Amigos em Apuros", "Atirar a Matar", "O Pequeno Nikita", "Heróis Por Acaso" e "O Chacal".
Sidney Poitier deixou três autobiografias: "This Life" (1980); "The Measure of a Man: A Spiritual Autobiography" (2000) e "Life Beyond Measure: Letters to My Great-Granddaughter" (2008).
Com dupla nacionalidade, cresceu nas Cat Island e Nassau, nas Bahamas, mas uma infância com grandes carências fez com que abandonasse os estudos aos 13 anos para ajudar a sustentar a família, e aos 15 regressasse a Miami, nos EUA, onde nascera como o mais novo de sete irmãos por acidente a 20 de fevereiro de 1927, durante uma visita dos pais.
Após uma série de empregos mal sucedidos em Nova Iorque, mentiu sobre a idade para se alistar no exército em 1943 e recebeu formação para trabalhar com doentes psiquiátricos, mas revoltado com a forma como eram tratados no hospital, fingiu ter uma doença mental para ser dispensado.
Lavou pratos para se sustentar e depois de inicialmente rejeitado pela The American Negro Theatre, onde conheceu o cantor e amigo para toda a vida Harry Belafonte, esforçou-se durante meses para melhorar como ator e perder o sotaque das Bahamas. Voltou a ouvir um não, mas convenceu a companhia a contratá-lo como porteiro e depois recebeu uma nova oportunidade e fez a estreia na Broadway em 1946.
Com "Falsa Acusação" em 1950, de Joseph L. Mankiewicz, começou uma carreira única no cinema: era o primeiro grande filme de um estúdio com um ator negro num papel de uma pessoa instruída, a de um médico confrontado com a vingança e racismo de um marginal branco que tenta salvar (interpretado por Richard Widmark).
O impacto da estreia conduziu a outras propostas e papéis mais proeminentes do que aqueles que eram normalmente oferecidos aos atores negros e um deles, o de um carismático estudante rebelde em "Sementes de Violência", de Richard Brooks (1955), catapultou-o para o protagonismo em Hollywood, fazendo-se notar a seguir em "Um Homem Tem Três Metros de Altura", de Martin Ritt (1957), um filme raro sobre uma amizade interacial.
Nesse filme, conheceu um ator e futuro realizador que se tornou um amigo para a vida: "Uma vez, o John Cassavetes deu-me alguns conselhos que se revelaram inestimáveis. Ele disse: 'Somos bons amigos, mas nunca, jamais, façamos um favor artístico a um amigo. Empreste dinheiro a amigos, esteja disponível para eles de todas as outras maneiras, mas não faça nenhum favor artístico, porque você tem que ter uma área da sua vida onde não exista espaço para compromissos".
A primeira e pioneira nomeação para os Óscares chegou aos 31 anos, com "Os Audaciosos", de Stanley Kramer (1958), um drama racial em que interpretava um prisioneiro em fuga agrilhoado a um branco racista (Tony Curtis), numa dupla forçada e marcada pelo desdém mútuo.
Em 1959, no mesmo ano em que entrou com Dorothy Dandridge no filme musical "Porgy e Bess", regressou à Broadway já como estrela para "A Raisin in the Sun" ao lado de Rudy Dee, que foi outro momento pioneiro por apresentar pela primeira vez as vidas de personagens negras a uma audiência esmagadoramente branca, mas também por ser a primeira peça a levar muitos espectadores negros ao teatro (a versão para o cinema com os mesmos atores dois anos mais tarde não encontrou o mesmo sucesso).
O filme "Noites de Paris" (1961), um drama sobre o contraste entre o racismo nos EUA e a tolerância em Paris, contracenando com Paul Newman, Joanne Woodward, Louis Armstrong e Diahann Carroll, antecedeu a consagração do Óscar com "Os Lírios do Campo" (1963), onde era um trabalhador desempregado a deambular pelo estado do Arizona até encontrar um grupo de freiras estrangeiras que acredita que ele foi enviado por Deus para lhes construir uma nova capela,
Grandes interpretações em "Desafiando o Perigo", "Uma Réstia de Azul" e "A Maior História de Todos os Tempos" (todos de 1965), antecederam o auge artístico e comercial, com o lançamento em 1967 de três filmes que o colocaram no primeiro lugar das estrelas com mais sucesso nas bilheteiras. Num deles, o vencedor do Óscar de Melhor Filme "No Calor da Noite", encontrou em Virgil Tibbs a sua personagem e interpretação mais recordada (ironicamente, ficou de fora da corrida à estatueta, ganha pelo colega Rod Steiger), que retribuiu a estalada dada por um branco e disse uma das frases mais célebres do cinema: "They call me MISTER Tibbs!" [Chamam-se SENHOR Tibbs!].
Em "O Ódio Que Gerou o Amor", Poitier era um engenheiro desempregado que conseguia um emprego como professor num liceu na periferia de Londres, onde se confrontava com uma turma indisciplinada disposta a tudo para que siga o exemplo dos que o antecederam e desista; "Adivinha Quem Vem Jantar" andava à volta das reações após uma mulher branca apresentar o seu noivo negro aos pais liberais (papéis de Katharine Hepburn e Spencer Tracy) e aos seus amigos; e "No Calor da Noite" andava à volta de um detetive de polícia negro da Filadélfia a investigar uma morte numa pequena cidade racista do sul dos EUA e a relação de tensão e progressivo respeito com o chefe de polícia local (Steiger).
Ironicamente, o próprio filme foi rodado principalmente não onde a história se passa, no Mississípi, mas no estado nortista de Illinois: antes da rodagem, o ator disse ao realizador que não trabalharia abaixo da linha Mason-Dixon [uma demarcação entre os estados da Pensilvânia, Virgínia Ocidental, Delaware e Maryland popularmente conhecida como a a simbólica fronteira cultural entre norte e o sul nos EUA] por razões de segurança (a primeira esposa chegou a ser ameaçada por racistas, que queimarem uma cruz no seu jardim, e ele e Harry Belafonte quase foram mortos pelo Ku Klux Klan numa viagem ao Mississípi). Quando foi necessário gravar cenas de exterior numa plantação de algodão mais a sul, no Tennessee, Poitier dormiu com uma arma debaixo da almofada e após ameaças de racistas, a produção foi abreviada para regressar ao Illinois.
Fora do grande ecrã, Poitier tornou-se um dos principais rostos no apoio aos movimentos dos direitos civis, comparecendo com Harry Belafonte na marcha história de 1963 em Washington onde Martin Luther King proferiu o histórico discurso "Eu tenho um sonho". Apesar do seu ativismo, foi criticado ao longo da sua carreira, mas principalmente após 1967 e por causa do médico de "Adivinha Quem Vem Jantar", por interpretar sistematicamente versões "idealizadas" e sem defeitos de afro-americanos, com ativistas negros a acusarem-no de ser um "instrumento sofisticado" do poder racista branco vigente no país.
"A questão resumia-se a porque é que não era mais zangado e confrontador. Essencialmente, estava a ser criticado por interpretar seres humanos exemplares", escreveu nas memórias "The Measure of a Man".
O próprio Poitier reconhecia a limitação, mas estava perante um dilema: o desejo de procurar papéis mais diversificados chocava com a contribuição decisiva que deu para alterar as perceções em relação a atores negros e as suas personagens, e, como verdadeiramente a única estrela negra de cinema, a responsabilidade de ser um exemplo e desafiar antigos preconceitos (mais de 20 anos depois, Denzel Washington sentiu a mesma responsabilidade depois de se tornar uma estrela até assumir o papel de vilão em "Dia de Treino", com o qual se tornou o SEGUNDO ator negro vencedor do Óscar de Melhor Ator na mesma cerimónia onde Poitier recebeu a estatueta honorária e Halle Berry se tornou a primeira negra a ganhar o Óscar de Melhor Atriz com "Monster’s Ball").
"Estava a carregar as esperanças e aspirações de um povo inteiro. Não tinha controlo sobre o conteúdo, nenhuma influência criativa exceto a de recusar fazer um filme, o que fiz com frequência", disse numa entrevista em 1989.
Virgil Tibbs regressaria em duas sequelas, "Chamam-me Mr. Tibbs" (1970) e "A Organização" (1971). E a seguir, com "Direito por Linhas Tortas" (1972), Poitier experimentou a realização, dirigindo ao todo nove filmes, chamando para o seu lado ou apenas dirigindo Harry Belafonte, Bill Cosby, Denise Nicholas, James Earl Jones ou Ruby Dee. O maior sucesso de todos foi a comédia "Dois Amigos em Apuros" (1980), que juntou a dupla Richard Pryor e Gene Wilder, o mais rentável nas bilheteiras (valor ajustado à inflação) de um cineasta negro até "Black Panther" (2017).
Por esta altura, já Sidney Poitier tinha reduzido consideravelmente o ritmo também à frente das câmaras: "Atirar a Matar" (1988) e "O Pequeno Nikita" (1988) foram os primeiros filmes em 11 anos ("Aos 50, decidi ver como era mesmo a vida para lá do corredor estreito do trabalho. Era maravilhosa", disse numa entrevista na época), e depois só emprestou o seu prestígio, estatuto e carisma a "Heróis Por Acaso" (1992) e "O Chacal" (1997).
Após mais alguns telefilmes, num deles representando Nelson Mandela, retirou-se em 2001, mas continuou a participar em eventos públicos até 2017, sempre reconhecido pela vida e carreira que inspiraram aqueles para quem abriu o caminho e cujo impacto extravasou o mundo do cinema, cumprindo o que escreveu na sua última autobiografia: "Não quero alcançar a imortalidade através do meu trabalho. Quero alcançá-la não morrendo. Mas..."
As reações
"Sidney Poitier, o primeiro ator negro a ganhar o Óscar de Melhor Ator, morreu aos 94 anos. Poitier quebrou barreiras e foi uma inspiração duradoura que promoveu o diálogo racial nos EUA através da sua arte. Poucas estrelas de cinema tiveram ou terão a influência que Poitier teve dentro e fora do ecrã", partilhou a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood.
"Durante mais de 80 anos, o Sidney e eu rimos, chorámos e fizemos todas as travessuras que pudemos. Ele era verdadeiramente o meu irmão e parceiro na tentativa de tornar este mundo um pouco melhor. Sem dúvida que ele tornou o meu muito melhor", destaca o comunicado do cantor Harry Belafonte, também com 94 anos e apenas nove dias mais novo do que o amigo.
"Foi uma honra chamar Sidney Poitier de meu amigo. Ele era um homem gentil e abriu portas para todos nós que estavam fechadas há anos. Que Deus o abençoe e à sua família", disse Denzel Washington à imprensa americana em comunicado.
"Este é um grande. Não há palavras que possam descrever como o teu trabalho mudou radicalmente a minha vida. A dignidade, normalidade, força, excelência e pura eletricidade que trouxeste aos teus papéis mostraram-nos que nós, enquanto pessoas negras, tínhamos importância! Foi uma honra", escreveu Viola Davis.
"Para mim, caiu a maior das 'Grandes Árvores'. Sidney Poitier. Foi uma honra tê-lo amado como um mentor. Amigo. Irmão. Confidente. Professor sábio. O maior e mais elevado respeito e aclamação pela sua vida magnífica, graciosa e eloquente. Estimava-o. Adorava-o. Tinha uma grande alma que irei sempre celebrar", partilhou Oprah Winfrey.
"O Sidney foi a minha inspiração, a minha luz, o meu amigo", escreveu Morgan Freeman.
"Através dos seus papéis inovadores e talento singular, Sidney Poitier sintetizou dignidade e elegância, revelando o poder dos filmes para nos aproximar. Ele também abriu as portas para uma geração de atores", recordou Barack Obama.
"Todos tivemos a sorte de partilhar uma cultura com Sidney Poitier e beneficiámos da sua mão a moldá-la", destacou Hillary Clinton.
"Acordar esta manhã com um telefonema de que Sidney Poitier tinha morrido... tudo o que vos posso dizer é que o meu coração se partiu noutro lugar. A elegância e classe que este homem demonstrou ao longo de toda a sua vida, o exemplo que ele estabeleceu para mim, não apenas como um homem negro, mas como um ser humano, nunca será esquecido ", escreveu Tyler Perry.
"Sidney era uma força da natureza. Um dos seres humanos mais inteligentes, bonitos e imparáveis que alguma vez conheci. Ele tornou o nosso mundo, e a minha vida, melhor de formas que nós ainda não conseguimos completamente compreender. Chamar-lhe uma lenda não lhe faz justiça. Ele era Sidney Poitier", escreveu a vencedora do Óscar Lee Grant e colega no filme "No Calor da Noite"
Whoopi Goldberg partilhou a letra do tema principal do filme "O Ódio Que Gerou o Amor" e acrescentou "Sir Sidney Poitier. Descansa em paz. Ele mostrou-nos como alcançar as estrelas.
Querido Sidney, você foi um gigante gentil na vida, na política e no cinema. Você continuará nos nossos corações e nos nossos ecrãs para sempre", escreveu Barbra Streisand.
"Hoje, perdemos um rei elegante hoje. Obrigado, Sidney Poitier. Por não apenas abrir a porta, mas por andar por este mundo com infinita elegância e excelência, para que hoje, ainda, sigamos atrás de si, chegando ao exemplo que você estabeleceu", escreveu Kerry Washington.
"Sidney Poitier, o teu último por-do-sol connosco é o amanhecer de muitas gerações surgindo no caminho da luz que lançaste. Iremos sempre ter-te nos nossos corações e falar o teu nome", partilhou Debbie Allen.
"Dissipando imediatamente a noção perversa, obscena e ignorante da supremacia branca de todas as formas encantadoramente humanas, artísticas e dignas = Sidney Poitier", destacou humanas lindamente humanas, artísticas e dignas = Sidney Poitier.
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