Não há, na história do cinema mundial, qualquer responsável de um estúdio que continue a ter um impacto tão marcante no dia-a-dia do mesmo 50 anos após a sua morte. Por exemplo, o público em geral não sabe quem foi, em que se diferenciaram e que importância tiveram William Fox, Samuel Goldwyn, Louis B. Mayer ou os irmãos Warner, embora todos já tenham visto filmes dos estúdios a que eles deram o nome, a 20th Century Fox, a MGM ou a Warner Bros. E é duvidoso que os próprios funcionários desses estúdios tenham a mais pálida ideia de quem foram os respetivos fundadores e mesmo que a marca que estes ali deixaram hoje em dia se estenda além do nome que então lhes deram.

O caso de Walt Disney é obviamente diferente. Ainda hoje, do cinema aos parques temáticos, passando pela televisão ou mesmo pelas lojas, toda a máquina Disney continua a ir beber aos princípios estabelecidos pelo fundador do estúdio, e muitas vezes a ter problemas quando se afasta demasiado deles. E que princípios são esses? Por exemplo, a aposta na qualidade acima de tudo (com a crença de que o investimento superior será compensado pelo acolhimento das audiências), a tónica no entretenimento familiar, o enfoque em personagens fortes e incompreendidas que acabam por fazer valer a sua visão do mundo, a aposta nos conteúdos como motor e alimento de todas as atividades da empresa, e a vontade de abraçar a inovação tecnológica unida à capacidade de projetar o futuro à frente de todos os outros.

A história de sucesso de Walt Disney sempre se fez contra ventos e marés, partindo de uma infância e juventude pobre e cheia de dificuldades, passando por várias tentativas falhadas de colocar o estúdio de pé até chegar a um primeiro sucesso nacional e planetário com a aposta na animação com som síncrono e a criação do Rato Mickey. Depois, muitas vezes colocando todo o projeto em risco de ruir, o crescimento do império deu-se com as apostas na cor (os primeiros filmes em Technicolor saíram do estúdio), na longa-metragem de animação, na criação do parque temático Disneyland e na transição para a televisão, que acabaria por mitificar a imagem do próprio Walt Disney. Tudo saltos de fé que qualquer princípio de lógica e precaução rejeitaria, mas em que o próprio Disney se empenharia com reconhecido entusiasmo, apostando na formação superior dos profissionais da sua equipa e controlando microscopicamente todos os passos de cada processo.

Resultado: era ele a peça criativa fundamental no funcionamento do estúdio e quando ele faleceu, aos 65 anos, a 15 de dezembro de 1966, ninguém na empresa estava preparado para seguir em frente. Exemplo, aliás, da força da personalidade de Disney no estúdio é a de que, nos 20 anos seguintes, as decisões de fundo eram quase sempre tomadas formulando a simples questão “o que é que Walt teria feito?”. E como ele geralmente teria feito aquilo de que ninguém estava à espera, a empresa foi definhando criativamente ao longo desse período, jogando sempre pelo seguro, rejeitando parceiros e projetos que poderiam ter sido essenciais (George Lucas levou inicialmente o projeto de “Star Wars” à Disney e, com Steven Spielberg, também o de Indiana Jones), transformando-se numa sombra do que outrora fora, mesmo quando de vez em quando alguém tentava furar esse sistema, como foi o caso de um projeto tão inovador como “Tron”.

Só a meados dos anos 80, com o abalo sísmico interno que foi a entrada em cena de uma nova equipa, liderada por Michael Eisner e Jeffrey Katzenberg, é que o estúdio voltou a crescer, uma vez que estes jovens empreendedores tinham o dinamismo, o conhecimento do mercado e vontade de risco da Hollywood da época, e souberam encaixar os princípios que conduziram a ação de Walt num raciocínio empresarial quase de guerrilha.

Assim, a animação, que estava moribunda, renasceu em sucesso (voltou a ser presença assídua entre os filmes mais vistos do ano), prestígio (a primeira nomeação de sempre ao Óscar de Melhor Filme com “A Bela e o Monstro” e o fim do preconceito junto do publico adulto) e variedade (além do desenho animado, foi o primeiro grande estúdio a abraçar a animação por computador, por via da então parceira Pixar, e ainda a animação em stop-motion, com “O Estranho Mundo de Jack”). Mas não só: os filmes de imagem real diversificaram-se e voltaram a atrair os talentos de topo da indústria, os parques temáticos modernizaram-se e espalharam-se pelo planeta, a oferta televisiva ganhou variedade e a empresa cresceu em todas as frentes a um nível nunca antes imaginado.

Com Bob Iger à frente dos destinos da empresa desde 2005, a Disney amplificou ainda mais o seu império com a aquisição da Pixar, da Lucasfilm e da Marvel, sabendo respeitar a identidade específica de cada uma delas e ao mesmo tempo integrando-as sabiamente na casa-mãe, até porque é notório que todas as três partilhavam muito do ADN original do estúdio do rato Mickey. Ainda por cima, o cinema voltou a ser a pedra de toque da empresa com 2016 a provar ser um ano recorde, já que, com apenas cerca de uma dezena de filmes lançados, conseguiu ter metade das dez fitas mais rentáveis do ano (e ainda falta fazer as contas a “Star Wars: Rogue One”) e arrebatar cerca de 25% de quota de mercado.

Claro que houve muitos enganos pelo caminho, desde a aposta desenfreada nas sequelas de qualidade inferior até alguma aposta na repetição de fórmulas, passando pela tentação pendular de tentar fazer dinheiro rápido com produtos de custo reduzido (tudo princípios contrários aos do próprio Walt Disney), e prosseguindo, já nos dias de hoje, com a perigosa tendência de refazer massivamente em imagem real os clássicos de animação do estúdio em vez de apostar em material novo.

De qualquer forma, é inegável que tudo na empresa parece ser ainda feito assumindo o espírito criativo do seu fundador, venerado por muitos dos criativos da indústria, de John Lasseter a Steven Spielberg. E prova de que o seu legado continua vivo está ainda na quantidade cada vez maior de livros de grande qualidade dados à estampa anualmente, que escalpelizam em profundidade todos os aspetos da sua obra e que, além de refutarem com todas as provas as acusações disparatadas de racismo e anti-semitismo por vezes apontadas a Disney, sinalizam principalmente que a sua obra e o seu legado parecem manter-se cada vez mais vivos, alimentados hoje por uma grande maioria de pessoas que não era sequer viva no dia já distante em que ele morreu.

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