A HISTÓRIA: Na viragem do século XX, o petróleo trouxe fortuna à Nação Osage, e os seus habitantes tornaram-se pessoas ricas de um dia para o outro. A riqueza destes Nativos Americanos, rapidamente atraiu intrusos brancos, que manipularam, extorquiram tudo o puderam, até recorrerem ao assassinato.

"Assassinos da Lua das Flores": nos cinemas a partir de 19 de outubro.


Crítica: Francisco Quintas

A turma de Hollywood dos Anos 70 é, discutivelmente, aquela que exerceu a maior influência sobre o cinema contemporâneo. Nomes como Francis Ford Coppola, Sidney Lumet, Brian De Palma, Woody Allen e Steven Spielberg costumam pontuar a lista daqueles que romperam tradições e semearam modos únicos de filmar.

É natural, porém, que nem todos se façam acompanhar pelo auge das suas capacidades, em direção ao terceiro ato da sua carreira. Martin Scorsese, rara exceção, é um autor que, desde “Os Cavaleiros do Asfalto” (1973), “Taxi Driver” (1976) e “Touro Enraivecido” (1980), se mantém no ativo com a mesma regularidade. O virtuosismo de cada filme mais parece desafiar o do anterior.

Além de figurar entre os melhores trabalhos do seu currículo, “Assassinos da Lua das Flores” surge no seguimento de um revisionismo da História Americana que o cineasta tem levado a cabo, pelo menos, nos últimos 10 anos, não obstante as naturezas, de cinema e narrativa, notavelmente distintas: “O Lobo de Wall Street” (2013) elaborou um estudo satírico sobre o estilo de vida excêntrico e patológico dos trabalhadores da Bolsa de Nova Iorque, enquanto “O Irlandês” (2019) examinou a frieza corporativa de criminosos que atuaram nos bastidores da política do século passado.

Baseando-se numa “verdadeira tragédia americana”, a perspetiva de Scorsese, mais uma vez ao comando da fotografia excecional de Rodrigo Prieto, aterrou sobre a repentina onda de homicídios de índios da Nação Osage do Oklahoma dos anos 1920, aquando da exploração petrolífera.

Se, por um lado, a arte atual tem adotado uma reavaliação dos costumes e pecados do passado, por outro, é de louvar a inteligência do realizador em atribuir os comportamentos dos homens e mulheres ao tempo a que se devem.

Se, por um lado, os westerns de John Wayne e John Ford foram (sim) bastante úteis à propaganda racista contra os nativos, Scorsese capta, fielmente, as vastas planícies e os escritórios soturnos onde se convivia, em plena consciência, com o dogma de que um índio não era mais humano do que um animal – uma subespécie, um ser sem alma.

Nesse sentido, é correto dizer que “Assassinos da Lua das Flores” não se apressa a condenar as mentalidades condenadas ao tempo em que nasceram, mas antes às maiores donas do genocídio: a ganância e a hipocrisia.

Não muito diferente do que se viu em “O Irlandês”, os maiores criminosos são os chamados “amigos da comunidade”, que investem em saúde e educação e acolhem os retornados dos conflitos bélicos. Personagens como William King Hale, interpretado por Robert De Niro, apesar de ausentes dos manuais de História, não estão muito longe de um qualquer Presidente. Tanto um como o outro alimentam-se das aparências benévolas, para, então, segredarem e conspirarem na escuridão, usualmente com uma retórica nacionalista pútrida.

No bolsos destes residem homens como Ernest Burkhart, interpretado por Leonardo DiCaprio, com uma mão atrás e outra à frente, que, por ingenuidade ou sobrevivência, viram instrumentos da vontade dos mais poderosos. O profundíssimo conflito da personagem principal serve, desta forma, como um veículo onde o público de 2023 se pode sentar.

Por sua vez, o desempenho fenomenal de Lily Gladstone, uma das quatro irmãs mais ricas do território Osage e esposa de Burkhart, é o coração da história. A atriz tem um talento raro de transmitir os mais complexos estados de espírito sem exuberantes expressões faciais.

“Assassinos da Lua das Flores” é um dos mais luxuosos banquetes cinematográficos do ano e, até agora, da década. A montagem compassada de Thelma Schoonmaker e a música original do recém-falecido Robbie Robertson elevam um constante sentimento de presságio, um clima de ameaça que, mais tarde ou mais cedo, implodirá num clímax desgastante e taciturno.

Em comparação com outros trabalhos do cineasta que abonam de um ritmo, em simultâneo, contemplativo e eletrizante, o único ponto menor a apontar será o desenvolvimento da passagem do tempo. Scorsese já filmou imensas juventudes, casamentos, reformas, entre outros. Aqui, torna-se, por vezes, incerto quantos meses ou anos foram comprimidos de uma cena para a outra. No que ao resto diz respeito, “Assassinos da Lua das Flores” é uma obra de arte irretocável.

Ao contrário de outros épicos que conseguem reconstituir, por muito leve que seja, a crença de esperança na Humanidade, Scorsese atira-nos para um mundo que dececiona e oferece poucas resoluções. Quiçá, uma representação do seu atual estado de alma, em contraste com a atmosfera rock & roll de tantos trabalhos passados. Talvez nos esteja a dizer que esta necessidade de restauro, ainda que chegue com décadas de atraso, nos deve ser confiada a nós, num esforço inacabado de abater os animais sedentos de dinheiro, por via do sangue e da mentira.