A HISTÓRIA: Entre as duas guerras mundiais, o filósofo Friedrich Ritter (Jude Law) e a sua mulher Dora (Vanessa Kirby) abandonam a civilização e mudam-se para uma remota ilha nas Galápagos. A sua fuga idílica é rapidamente interrompida pela chegada de outros viajantes com os seus próprios planos, incluindo um casal (Daniel Brühl e Sydney Sweeney) em busca de uma cura para a tuberculose e uma baronesa (Ana de Armas) com planos para construir um hotel de luxo. A coexistência entre os habitantes transforma-se numa luta pela sobrevivência, enquanto lidam com as adversidades da ilha e as ambições conflituosas de cada um.

"Éden": nos cinemas desde 4 de setembro.


Crítica: Manuel São Bento
(Aprovado no Rotten Tomatoes. Membro de associações como OFCS, IFSC, OFTA. Veja mais no portfolio).

Antes de assistir a um novo filme de Ron Howard, levo sempre comigo um certo mapa de expectativas. O cineasta de "Uma Mente Brilhante" (2001) e "Apollo 13" (1995) construiu uma carreira marcada por histórias humanas de grande apelo emocional, aliadas a uma realização clássica, firme e raramente desprovida de substância. Ao saber que iria adaptar "Éden", um episódio verídico tão curioso e sombrio como o da ilha Floreana - onde diferentes colonos europeus tentaram fundar o seu paraíso e acabaram por mergulhar em conflitos, fome e tragédia - era inevitável esperar uma obra de reflexão moral intensa. O argumento de Noah Pink, responsável por "Tetris" (2023), só reforçava a curiosidade: um escritor habituado a trabalhar factos reais com dramatização cinematográfica, agora a colocar em cena um estudo sobre a impossibilidade de escapar à própria condição humana.

A história acompanha o médico alemão Friedrich Ritter (Jude Law), um homem de princípios rígidos que decide abandonar a Europa e a sua decadência para viver segundo uma filosofia de vida austera, onde até a forma de comer, respirar e amar obedece a regras inquebráveis. Ao lado de Dore Strauch (Vanessa Kirby), Friedrich acredita ter encontrado a oportunidade perfeita para viver em pureza, liberdade e racionalidade. Mas cedo outros colonos chegam à ilha com ideais distintos: Heinz Wittmer (Daniel Brühl) e a esposa Margret (Sydney Sweeney) procuram apenas estabilidade e um novo começo, enquanto a Baronesa Eloise Bosquet de Wagner Wehrhorn (Ana de Armas) desembarca com o objetivo declarado de construir um hotel de luxo. As tensões que nascem entre estas visões de paraíso transformam a experiência num estudo das fissuras inevitáveis da civilização, que não tarda a reproduzir os mesmos vícios que todos afirmavam querer deixar para trás.

A beleza natural de Queensland, na Austrália, onde "Éden" foi filmado, serve de pano de fundo perfeito a esta narrativa. A câmara de Mathias Herndl ("The Twilight Zone") mostra-nos uma ilha isolada com a sua vegetação exuberante e beleza desarmante, mas nunca permite que nos deixemos encantar por completo: há sempre algo de ameaçador, um detalhe de perigo a pairar sob a superfície idílica. Este contraste entre exterior deslumbrante e interior corrosivo é a imagem mais clara do próprio enredo - sonhos utópicos que parecem perfeitos à distância, mas que se desfazem assim que entram em contacto com a necessidade, a inveja e a simples realidade de conviver com outros seres humanos.

No entanto, algumas escolhas técnicas dificultam a imersão. Os sotaques do elenco soam desconexos, quase artificiais, e retiram veracidade às interações que deveriam ser naturais. A isto juntam-se problemas pontuais de ADR, com falas que não coincidem com os movimentos labiais. São detalhes que, numa produção desta escala, pesam mais do que deveriam, sobretudo porque contrastam com o esforço visível do elenco. Law, por exemplo, encontra em Ritter um dos arcos mais fascinantes de "Éden": o homem que não comia carne, que defendia uma vida em sintonia com a natureza e que se apresentava como modelo de disciplina, vai-se transformando progressivamente num reflexo deturpado daquilo que condenava. A sua degradação moral acompanha a degradação física: à medida que a fome cresce e as frustrações sociais se acumulam, o idealista que sonhava com um mundo puro torna-se no retrato de como o idealismo pode ser corrompido pela realidade. É o exemplo mais forte de como a obra reflete a fragilidade de qualquer utopia.

Dore começa por surgir como companheira firme, determinada a provar que consegue viver segundo os princípios rigorosos do parceiro. Mas, lentamente, a sua fachada também desmorona. O desejo de ser respeitada e amada torna-se mais forte do que qualquer ideologia, e a personagem acaba por se deixar consumir pelo ressentimento e pela vingança. Através dela, Howard mostra que mesmo quem aparenta força e convicção pode ser perturbado pela necessidade de validação, revelando o quanto a sobrevivência emocional pesa tanto quanto a física.

Em sentido oposto, Eloise personifica a vaidade e a manipulação. Convencida da sua perfeição e consciente do poder da sua beleza, usa o magnetismo para seduzir, conquistar e manipular todos à sua volta. Nunca chegamos a conhecer a mulher por trás da máscara: ela existe apenas em função da imagem que projeta e do reflexo de quem a idolatra. É uma representação contundente de como o ego e a ambição destroem qualquer noção de comunidade, funcionando como um lembrete de que o paraíso pode ser destruído não apenas pela necessidade, mas também pelo narcisismo.

Se Eloise representa o extremo da vaidade, Margret é o coração humano de "Éden". A interpretação de Sweeney surpreende pela inocência genuína com que se apresenta, mas também pela astúcia que esconde por baixo dessa suavidade. Margret quer paz, amor e vizinhança, valoriza a família acima de tudo, mas percebe mais do que deixa transparecer. Em conjunto com Heinz, constrói o casal mais realista e emocionalmente estável do filme. Heinz pode sentir-se seduzido pelas ideias de Ritter, mas mantém-se sempre ligado ao lar e ao amor pelos seus. O que vemos neste casal é a tentativa de preservar a civilização não na abstração filosófica, mas nas pequenas coisas do dia a dia: a família, a partilha, o cuidado. É a linha narrativa que melhor simboliza como a civilização, mesmo em miniatura, é frágil, mas também capaz de resistir.

É precisamente nesta coexistência de diferentes perfis humanos que "Éden" encontra a sua força temática. Cada personagem funciona como uma lente distinta através da qual percebemos o desmoronar das utopias: Ritter ilustra como o idealismo se corrompe sob o peso da realidade; Dore expõe a fragilidade dos vínculos quando o amor não encontra correspondência; Eloise encarna a manipulação como forma de sobrevivência; e Margret e Heinz demonstram que, mesmo quando a civilização deixa de funcionar, ainda há espaço para um resquício de humanidade. O que se revela é uma espiral inevitável de violência, como se a paz fosse impossível sem o confronto e como se a sociedade estivesse condenada a repetir os mesmos erros, mesmo quando tenta começar do zero.

Howard conduz esta tragédia com uma realização segura. Opta por enquadramentos que mostram não apenas o que se passa no centro da ação, mas também aquilo que se desenrola em segundo plano, reforçando a sensação de que há sempre algo prestes a desmoronar. É um trabalho coeso, mas que não resiste à tentação do melodrama: certos momentos parecem excessivamente sublinhados e a carga emocional é, por vezes, "martelada" de forma mais pesada do que necessário, diminuindo a contundência do material real em que se baseia. Por vezes, a narrativa prefere arrumar as personagens como arquétipos demasiado definidos, quando talvez ganhasse mais força em abraçar a ambiguidade e a incerteza.

Conclusão

"Éden" é um retrato convincente da queda dos sonhos utópicos perante a inevitabilidade da natureza humana. As interpretações são consistentes, a cinematografia é imersiva e os temas ecoam muito para lá do grande ecrã. Mas a dramatização excessiva, os problemas técnicos e algumas escolhas estilísticas menos felizes impedem que alcance a grandeza a que claramente aspirava. O resultado é um estudo interessante, com momentos poderosos, mas que deixa a sensação de que poderia ter sido mais devastador se tivesse confiado menos no melodrama e mais na crueza dos factos.