A IFPI (International Federation Of Phonographic Industry) é o principal organismo associativo da indústria discográfica global e segundo o seu mais recente relatório, para esse lado as coisas sorriem. Em 2022 as receitas da música gravada subiram pelo 8.º ano consecutivo, desta vez 9%, suportadas principalmente pelo crescimento do seu consumo em streaming (+11,5%) e até em suporte físico; é que a queda nos CDs quase estabilizou (- 0,4%), o vinil continuou a subir (17,1%) e reapareceram as cassetes.
O download e outras formas de consumo digital desceram 11,7% enquanto as receitas dos direitos aumentaram 8,6%.
Depois do trambolhão pandémico, o sector da música ao vivo recuperou, mas no ano passado ainda ficou mais de 2 mil milhões abaixo de 2019, o último ano sem COVID-19. Não há números globais do setor da música ao vivo até 2013, mas os números públicos de 2014 em diante já superavam os de toda a música gravada em mais de 10 mil milhões de dólares. Após a queda brutal imposta pela pandemia só em 2022 voltou a ultrapassar o retorno financeiro da música gravada.
Um modelo de negócio que sempre prejudicou os criadores
Para perceber como estão as coisas na indústria da música é preciso conhecer o minimamente a evolução do seu modelo de negócio em que quase sempre a parte criativa da equação - intérpretes e autores - foi a menos remunerada. Nos primórdios os custos de gravar e distribuir uma obra eram incomportáveis e os músicos dificilmente tinham acesso aos meios de gravação sozinhos. Foi por isso que apareceram os financiadores, os editores, geralmente proprietários de estúdios com alguma ligação empresarial regular ao fabrico e distribuição de pautas, mais tarde cilindros e discos, cassetes e CDs. A editora era o Banco que avançava os custos de produção, fabrico e distribuição, debitados posteriormente nas receitas das vendas. Por esta função industrial a editora cobrava ainda entre 80 e 95% dos lucros. Agora vejam a escala: se mesmo recebendo apenas entre 5 e 20% dos lucros houve músicos a tornarem-se milionários, imaginem o que ganharam as suas editoras.
Isto até 2000, ano em que a net ganhou maior velocidade e o software de partilha de ficheiros inundou o mundo começando no Napster. Foi o princípio do fim de um modelo de negócio que transformara as editoras nos grandes guardiões, porteiros do mundo da música. Até ao final dos anos 70 e à explosão de editoras independentes espoletada pelo punk, assinar um contrato discográfico era, para o artista, a obtenção do estatuto de “cliente da casa”. E a “casa” era o mercado. Sem editora não podia gravar, reproduzir inúmeras cópias dessa gravação, fazê-las chegar a todas as lojas, todas as rádios e canais de promoção possíveis, enfim... estar no mercado.
Desde a invenção do fonógrafo por Thomas Edison que os avanços tecnológicos foram reduzindo os custos de estar no mercado, mas só com a chegada do vinil após a segunda guerra mundial se caminhou de facto para uma maior democratização do consumo. A descida dos custos de gravação e fabrico demorou um pouco mais, mas em meados dos anos 70 já eram rentáveis as edições de 1.000 cópias, permitindo a colocação em prática das filosofias “do it yourself”, “low fi”, “less is more” trazidas para a música pelo punk. Abriram dezenas de pequenas editoras que revelaram milhares de novos artistas, geralmente com uma partilha mais equitativa das receitas.
Ao vivo é que é
Mas era na música ao vivo que os intérpretes ganhavam de facto a vida. As editoras não entravam na equação e as receitas eram divididas entre os artistas, managers, agentes e promotores de concertos. Cachets e receitas de merchandising eram a sua principal fonte de receitas até chegarmos a este século e à rentabilização total do tempo dos artistas; atualmente paga-se não só para os ver em palco, como para tirar uma foto ou trocar 30 segundos de conversa; são os famosos “Meet & Greets”.
Dois anos de paragem empobreceram a maioria dos artistas ativos, com digressões canceladas em todo o mundo. Concertos online pagos não funcionaram já que um concerto é uma celebração em que nos sentimos emparelhados com os restantes membros do publico em momentos de cúmplice comunhão. Ver o concerto num écran, mesmo que o façamos num recinto com mais pessoas, não é exatamente a mesma coisa. Poucos funcionaram.
Mas dois anos de paragem aumentaram o consumo de música nas principais plataformas de streaming e o crescimento das receitas continuou, como atestam os números da IFPI. Só que essas receitas são o somatório dos streams de milhões e milhões de canções de milhares de artistas editados nos últimos 50 ou 60 anos em todas as plataformas de streaming, do Spotify ao Youtube passando pela Apple Music, Deezer, Tik Tok, etc.
Spotify: 60.000 novas canções por dia
Uma análise de 2021 revelava que eram carregadas diariamente no Spotify 60.000 canções, o que perfaz mais de 20 milhões de faixas por ano. Destas, 1.2 milhões são propriedade das “major labels” (Sony, Warner, Universal), enquanto as canções carregadas diretamente por artistas independentes eram 8 vezes mais: 9.5 milhões. Os restantes temas, para cima de 10 milhões, foram carregados por editoras independentes.
No entanto, e apesar de o próprio Spotify confirmar que há mais de 8 milhões de artistas com produto carregado na sua plataforma, a plataforma reconhece que 90% dos streams são gerados por apenas 0,7% desses 8 milhões, ou seja: 56.000. E destes sabe-se lá quantos é que estão nas fileiras das editoras, o que quer dizer que só viram entrar na sua conta uma percentagem do que a sua editora recebeu.
Em termos de receitas, o Spotify mostra que pagou mais de 5 mil milhões de dólares em direitos em 2020. Se 90% foram apenas para 0,7%, significa que para os restantes 7.944.000 sobraram 0,5 mil milhões, ou seja, pouco mais de 60 dólares por ano.
Mas não é tudo. O relatório do Spotify também informa que desses 56.000 só 800 é que receberam mais de 1 milhão de dólares e só 7.500 receberam mais de 100.000. Ou seja, mesmo estando na elite dos 56.000, há 48.500 que ganharam menos de 100.000 dólares por ano.
É claro que as contas não podem ser simplificadas desta forma porque não há uma tabela fixa e a remuneração depende de tantos fatores que ninguém consegue contestar o emaranhado de regras que a define. Mas desde o “skip rate” à quantidade de temas ouvidos em toda a plataforma, passando pelas receitas de subscrições e publicidade, aos países onde é ouvido, tudo pesa na tabela pro rata que as plataformas de streaming pagam aos criadores. Há ainda os contratos dos intérpretes e autores, que podem ser independentes e ficar com a totalidade das receitas geradas ou ter de repartir com editoras e publishers.
E os próprios fluxos de receitas são diferentes de artistas para artistas. Os jovens DJs de Eletronic Dance Music (EDM) ou os novos rappers, os ídolos millenial como Bad Bunny, Harry Styles e Billie Eilish ou os vários grupos de K-Pop por exemplo, são consumidos maioritariamente em streaming. O peso do formato é tal que o Hot 200 da Billboard – antes a tabela que reunia semanalmente os singles mais comprados na América – engloba hoje vendas, airplay de rádio e tv, e streaming em qualquer fonte digital, ou seja: além das plataformas regulares de streaming como Spotify, Apple Music, Tidal ou Youtube, inclui as redes sociais. Artistas como Doja Cat, Taylor Swift, Dua Lipa, Drake ou Ed Sheeran dominam hoje o Hot 200, mas quando vamos ver as digressões ao vivo que mais faturaram em 2022...
#1; Bad Bunny; $435.18 Milhões; 2,477,334; 81
#2; Elton John; $391.62 Milhões; 2,421,594; 92
#3; Coldplay; $342.27 Milhões; 3,802,812; 64
#4; Ed Sheeran; $247.01 Milhões; 3,046,063; 62
#5; Harry Styles; $244.01 Milhões; 1,900,975; 78
#6; Rammstein; $216.86 Milhões; 2,192,674; 44
#7; Daddy Yankee; $198.09 Milhões; 1,900,953; 83
#8; Red Hot Chili Peppers; $177.10 Milhões; 1,465,525; 31
#9; Def Leppard & Motley Crue; $175.51 Milhões; 1,341,035; 36
#10; The Weeknd; $148.68 Milhões; 1,002,435; 21
#11; Guns N Roses; $146.92 Milhões; 1,597,698; 44
#12; Kenny Chesney; $135.26 Milhões; 1,296,079; 41
#13; Garth Brooks; $126.58 Milhões; 1,575,020; 26
#14; Billie Eilish; $126.45 Milhões; 1,090,207; 77
#15; Lady Gaga; $125.33 Milhões; 879,994; 29
#16; The Rolling Stones; $120.76 Milhões; 712,541; 14
#17; BTS; $118.28 Milhões; 1,688,126; 7
#18; Eagles; $118.07 Milhões; 606,494; 45
#19; Kendrick Lamar; $110.89 Milhões; 929,056; 73
#20; Morgan Wallen; $109.41 Milhões; 841,798; 55
Mais de metade dos artistas que mais faturam em concertos ao vivo em 2022 começaram as suas carreiras antes do ano 2.000. Já não têm impacto nas tabelas de vendas porque estas valorizam mais o streaming do que as vendas físicas e a maioria do público de Elton John e dos Def Leppard ou da música country não transitou para o streaming ou não passa a vida a partilhar excertos das suas músicas em cada post de Instagram ou Tik Tok. Consome passivamente rádio ou ainda houve os vinis e CDs que adquiriu. Mas ainda estão vivos e gastam, como se vê pela tabela acima.
Em suma, sim, a música continua a ser um bom negócio. Mas como sempre, só para alguns.
No streaming, as entidades (editoras, fundos de investimento, publishers, etc) que reúnem os direitos de um grande portfolio de milhões e milhões de canções que, sem qualquer custo, geram constantemente cêntimos, têm em mãos um bom negócio.
Para mega-artistas (milhões de streams) que detenham a maioria dos direitos, o streaming é não só um bom gerador de receitas como uma excelente arma de promoção, não sujeita ao poder de seleção dos curadores de playlists da rádio ou cabo nem a nenhum outro “gatekeeper”. Mais streams geram outras fontes de receita: não só as rádios começam a passar uma canção que se revela bombástica no streaming (gerando mais receitas de direitos), como maior afluência de publico aos concertos, que é onde está o verdadeiro pote.
Para os iniciantes o streaming permitiu a ultrapassagem da maior barreira que havia entre a sua música e o público: a editora, que fabricava e distribuía o produto às lojas. Mas aumentou exponencialmente a competição, pelo que a sobrevivência só a partir da produção e consumo da sua música é quase impossível.
Os tempos em que os Beatles podiam decidir “não tocar mais ao vivo” ou os dinossauros passarem temporadas de anos sem lançar nova música, esses, definitivamente, acabaram.
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