Maria Antónia Mendes (Mitó), Carlos Guerreiro, Pedro da Silva Martins, Luis J Martins, Nuno Prata e Sérgio Nascimento formam o ‘super grupo’ que deve a sua criação a uma deslocação de um dos elementos a uma estação dos correios, em Lisboa.

Num encontro casual, Sérgio Nascimento e Carlos Guerreiro recordaram quando os Deolinda, com quem o primeiro tocava, e os Gaiteiros de Lisboa, de que o segundo faz parte, fizeram um espetáculo conjunto, no cinema São Jorge, em Lisboa, no âmbito do festival Misty Fest.

“Foi para aquela ocasião [em 2013] e ficou um sentimento de pena de não continuarmos a fazer coisas juntos. Quando encontrei o Carlos nos correios, veio essa conversa à baila, e ele disse-me: 'Temos que desafiar o Pedro para fazer uma ou duas canções, só para fazermos uma brincadeira', só que o Pedro fez muitas mais e de repente tínhamos material para fazer um disco”, contou Sérgio Nascimento à Lusa, à margem de um ensaio do grupo, em Lisboa.

Com o mundo a enfrentar uma pandemia, “a coisa foi crescendo devagarinho”. De três passaram a cinco, com a entrada de Luís J Martins (Deolinda) e Mitó (A Naifa e Señoritas), “a voz certa” para o projeto, e mais tarde a seis, quando Nuno Prata (Ornatos Violeta) se ofereceu para se juntar ao grupo, “e fazia todo o sentido, porque era um instrumento [baixo] que nos fazia falta para a construção de tudo, e por ser a pessoa que é”.

O nome do grupo foi decidido em conjunto. “Cara de Espelho faz parte de um verso de uma canção ['Cara que é tua', que abre o álbum] que se chamaria Cara de Espelho, se não tivéssemos ‘roubado o nome para a banda’”, contou Nuno Prata.

O músico admite que “se calhar havia nomes mais sonantes”, “mas este fazia parte da banda e sentimos que teria espaço para crescer como conceito, e o trabalho da Ana Viana do design do disco, veio completar essa questão - a imagem e o imaginário”.

Ao longo das carreiras os seis músicos já se tinham cruzado uns com os outros na estrada ou tocado juntos noutras bandas ou ocasiões. Em comum, têm também o facto de estarem ligados a projetos musicais que, de uma maneira ou de outra, se posicionaram politicamente através da música.

No entanto, quando pensaram em criar o que mais tarde viriam a ser os Cara de Espelho, Sérgio Nascimento e Carlos Guerreiro não tinham como premissa que fosse uma banda de intervenção. Mas a realidade encarregou-se de o fazer.

Cara de Espelho, a nova banda que junta membros dos Deolinda, A Naifa, Ornatos Violeta e Humanos

“Pelas várias circunstâncias que nos últimos anos têm tomado uma relevância grande e algumas questões que estão a ser postas em causa, senti a necessidade de falar em determinado tipo de assuntos” nas canções, referiu Pedro da Silva Martins.

Ter na banda Carlos Guerreiro, “que tem a história que tem e a ligação que teve, artística e musical, a uma série de grupos”, como o GAC – Grupo de Acção Cultural, e a voz da Mitó, que “também tem esse cunho e esse peso”, acabaram por fazer de Cara de Espelho uma banda com coisas a dizer, como que “separando o cristão do taoista, do judeu, do islamista, do ateu ou do budista, do batista mirandês [...] sobra muito pouco português”.

“Este grupo é um grupo com uma certa polaridade, politicamente somos ativos. E por isso eu senti que era determinante e urgente falar em determinado tipo de temas. E assim nasceram várias canções, como ‘Corridinho português’, ‘Político antropófago’ ou ‘Dr. Coisinho’. São canções que refletem um bocado o estado atual das coisas”, referiu o músico, que é responsável pelas letras e músicas do álbum.

Os Cara de Espelho são um projeto “assumidamente, ‘assumidissimamente’” interventivo, disse Mitó.

Aliás, não fosse assim e não teria decidido retomar a carreira na música, que deu como terminada em 2018, com um último concerto do projeto Señoritas.

“Precisamente por causa do atual contexto e, claro, também da genialidade de quem escreve as letras e dos músicos com quem percebi que me estava a enredar, pela emergência de não podermos estar calados, comecei a ter essa urgência dentro de mim e encontrei a equipa certa. Foi isso que me fez saltar do sofá e voltar para a música passados estes anos”, afirmou.

Mitó recordou que “a música também é uma arma, como dizia José Mário Branco”, para reforçar a emergência que sente de “dizer coisas, desmontar mitos, desmontar fantasias”.

Pedro da Silva Martins partilhou que as 12 canções que compõem o álbum “surgiram num momento em que isto não estava ainda assim”.

“Ainda não havia a perspetiva de haver um Trump a ganhar as eleições norte-americanas, não havia eleições antecipadas [em Portugal]. Não havia nada disso, mas já sentia a necessidade de falar desses temas, que são atuais e vão continuar a ser, e é preciso falar deles”, explicou.

No ano em que se comemoram os 50 anos da revolução de 25 de Abril de 1974, que pôs fim a 48 anos de ditadura, o músico acredita que, mais do que nunca, os músicos devem usar a Arte para se posicionarem.

“Acho que estamos a passar um momento em que se não tomarmos uma posição - não é só na música - vamos ter muitas dificuldades em expressarmo-nos livremente em todas as áreas”, alertou.

Para Pedro da Silva Martins, criar Arte Interventiva, no seu caso música, “é natural”. “É uma reação como há reações de resposta da Natureza a determinado tipo de coisas, a nossa natureza é responder assim”, disse.

Com o álbum de estreia disponível a partir de hoje, para Mitó “o essencial já está feito, a necessidade de ‘cuspir’ as palavras” das canções.

“Tal como nos meus projetos anteriores, o sucesso que isto possa vir ou não a ter não é o que me move. A partir de agora é com o público. Vou cantar com o mesmo gosto se for um grande sucesso ou se for um grande fracasso”, referiu.

As músicas do álbum de estreia dos Cara de Espelho, e outras inéditas que já fazem parte dos ensaios, podem ser ouvidas ao vivo em Braga (24 de fevereiro no Theatro Circo), em Loulé (2 de março no Cineteatro Louletano), em Lisboa (5 de março no Teatro Maria Matos) e no Porto (16 de março na Casa da Música). Para celebrar o lançamento, o projeto partilhou o videoclip de "Tratado de Paz". "Inspirado nas palavras de Mahmoud Darwich, canta os dramas da guerra, dos que ficam e dos seus despojos", descreve.