Talvez tenhamos de recuar até "Post" (1995) ou "Homogenic" (1997) para encontrarmos um disco de Björk tão imediatamente convidativo como "Vulnicura". Depois dos mais cerebrais e herméticos "Medúlla" (2004), "Volta" (2007) e "Biophilia" (2011), o romantismo com que "Stonemilker" nos acolhe oferece um cenário tão grandioso como inesperado nesta fase do percurso da sua autora.

É verdade que este primeiro contacto com o nono álbum da islandesa (se incluirmos a banda sonora "Selmasongs" nestas contas) até traz mais reconhecimento do que reinvenção, com arranjos de cordas a lembrar os tempos de "Jóga" e eletrónica serena na linha de outro clássico, "All Is Full of Love" (a versão mais ritmada, do single e videoclip). Mas não será menos verdade que esta familiaridade também devolve Björk a um território reconhecidamente seu sem que assente apenas na repetição, como os outros momentos do alinhamento acabarão por atestar.

Se este primeiro embate lírico, musical e emocional é estranhamente afável, "Vulnicura" não demora muito a mergulhar num relato conjugal à beira ou depois do fim, tradução direta do quotidiano da islandesa ao lado do seu ex-companheiro, o artista visual Matthew Barney, união que durou mais de dez anos. O nível de detalhe do retrato privado surpreende tendo em conta o lado mais metafísico dos últimos álbuns de Björk, dominados por reflexões sobre a natureza, ciência ou tecnologia. E nem "Vespertine" (2001), dedicado à esfera íntima e com um olhar mais otimista sobre o relacionamento amoroso, chegava a ser tão terra-a-terra como a maioria destas novas canções.

Não nos admiramos, por isso, que a islandesa tenha tido uma reação tão tardia e ainda assim discreta à partilha ilegal do disco, na internet, dois meses antes da data da edição - prevista para março, coincidindo com a chegada da cantora aos 50 anos, o lançamento de um livro e a inauguração de uma exposição no Museum of Modern Art, em Nova Iorque.
O incidente acabou por levar a que o álbum fosse oficialmente disponibilizado no iTunes, embora só passe para os escaparates na data agendada inicialmente. Nada que tenha incomodado muito a sua autora, antes pelo contrário. "A natureza emocional do álbum é o tipo de assunto que queria tirar do caminho para seguir em frente. Foi logo essa a minha reação. Era um álbum imediato, e criei-o tão rapidamente, que o meu pensamento foi: 'Oh, já foi partilhado, vamos editá-lo'", esclareceu à BBC Radio 1 dias depois da edição, salientando que o facto de o disco já estar masterizado nas duas versões foi um pormenor importante na decisão.


Esta atitude contrasta com o alarmismo de Madonna, que entrou em pânico quando canções do seu próximo álbum, "Rebel Heart", começaram a circular online sem a sua autorização. Mas onde a rainha da pop mantinha a colagem a modelos do hip-hop ou da música de dança atual nesses primeiros esboços e Beyoncé, antes dela, serviu um álbum sem pré-aviso ofuscado pelo peso do gesto e pompa dos muitos videoclips, em "Vulnicura" é mesmo a música que se destaca - a mensagem e não o meio. E se poderia haver suspeita do seguidismo que tem vincado os últimos discos de Madonna, em especial pelo nome de Arca nos créditos (jovem produtor venezuelano cujas colaborações incluem Kanye West e a muito celebrada FKA Twigs), o terreno que Björk percorre aqui é claramente seu e imune a grandes maneirismos de um esteta do momento - além do produtor, há apenas outro colaborador no departamento técnico, o britânico Haxan Cloak, responsável pela mistura.

Cenas da vida (e separação) conjugal

O disco de Björk que mais se assemelha, assumidamente, a um diário, traça um percuso detalhado, embora não exaustivo, dos tempos que antecederam o fim da relação conjugal, nas três primeiras faixas, e dos que o sucederam, nas três seguintes ("I better document this", um dos versos de "Stonemilker", é uma ideia levada a sério). Já as três últimas sugerem que a separação foi devidamente digerida e superada, ou está pelo menos a caminho disso.

A música acompanha a narrativa e sofre alterações cada vez mais bruscas ao longo dos três arcos, mesmo que o todo permaneça coeso - não tanto pela composição mas pela vertente instrumental, baseada em variações do cenário eletroacústico do tema de abertura. O primeiro terço será o mais acessível, com a tensão rítmica de "Lionsong" a manter o fulgor do arranque e a quase despida - na música e na letra - "History of Touches" a oferecer os três minutos mais minimalistas e sensoriais do alinhamento (confidências como "Every single touch/ We ever touch each other/ Every single fuck/ We had together/ Is in a wondrous time lapse/ With us here at this moment" estão muito longe das letras algo opacas dos últimos discos).

Mais exigentes, os dez minutos de "Black Lake" impõem uma sucessão de canções longas e um sinfonismo menos orelhudo do que a candura do arranque. Aliás, raramente ouvimos Björk tão triste como neste lamento que entrecruza silêncios e exposição, rudeza e beleza, peça central de um disco valorizado quando ouvido na íntegra e de seguida (e aí fará sentido o rótulo de álbum conceptual).
"Family" é outro tema que pede atenção e recompensa o empenho, partindo de loops eletrónicos até ser interrompido por um solo de violoncelo, numa das viragens mais agrestes de "Vulnicura".
Mas a melhor reação ao desmoronar do relacionamento chega com "Notget", desde já uma das grandes canções do ano, mérito de um dramatismo cinematográfico aliado a uma ótima (e inconfundível) forma vocal. Ainda por cima, mais uma vez, as letras não são mero adereço, por muito que a sua autora as tenha considerado adolescentes numa entrevista à Pitchfork (palavras como "If I regret us/ I'm denying my soul to grow/ Don't remove my pain/ It is my chance to heal" têm direito a atmosfera à altura num dos picos de intensidade do disco).


É preciso chegarmos ao último terço para "Vulnicura" trair a sensação de um grande álbum em potência, encerrando alguns momentos apaixonantes com experiências apenas curiosas. "Atom Dance" conta com a entrada em cena de Antony Hegarty, mas deixa saudades da colaboração de "The Dull Flame of Desire", um dos poucos episódios memoráveis de "Volta". A nova parceria vale mais pelo risco do que pelos resultados, apesar de marcar uma viragem determinante na jornada confessional ("I am dancing towards transformation/ Learning by love to open it up/ Let this ugly wound breathe (...) Enter the pain and dance with me").

"Mouth Mantra", entre eletrónica glitch e orquestrações densas e monumentais, também não chega a ser tão vertiginosa como o arranque sugere, deixando um travo a remistura acentuado por "Quicksand", desenlace estranhamente conciso mas coerente na temática, a mostrar um pragmatismo ausente até aí. "When I'm broken, I am whole", garante Björk, numa constatação que vai bem com a fuga para a frente sublinhada pelo ritmo acelerado do tema. E mesmo que este remate não mantenha a inspiração de parte do alinhamento, as suas palavras fazem justiça a "Vulnicura", disco em que a ressaca emocional conduz à reconciliação artística. Depois de a julgarmos perdida para alguns esoterismos sem especial brilho, é bom reencontrar esta Björk: de corpo inteiro, com emoções à flor da pele e, finalmente, pés bem assentes na terra.

@Gonçalo Sá