Palco Principal - “O Glorioso Retorno de Quem Nunca Esteve Aqui”, o seu disco de estreia, foi lançado há relativamente pouco tempo. Como tem sido o feedback?
Emicida - Tem sido maravilhoso, o álbum foi eleito número #1 no Brasil por várias entidades. Na minha opinião, é um álbum experimental. Tem uma mistura de vários estilos. No início até fiquei com receio que o disco soasse a uma coletânea. Felizmente, quando ouvi o resultado final, reparei que tinha uma linha no tempo e que tinha ganho uma estética própria. A partir daí, deixei-o falar por si próprio.
PP - Os temas foram todos feitos na mesma altura?
E - Não. Há lá músicas antigas… O tema “Nóiz”, por exemplo, foi feito em 2008 – nos padrões da atualidade já pode ser considerado antigo. A conceção do álbum durou muito, desde 2004 que eu já tinha o título em mente.
PP - O título reflete bem essa ideia de alguém que, apesar de se estrear agora, já cá anda há alguns anos…
E - Essa é a intenção, porque, para muitos, esta estreia acaba por não ser estreia nenhuma. A minha carreira foge muito ao comum no Brasil. O meu nome surge sem disco previamente editado. Consegui tornar-me popular quando comecei a fazer as primeiras mixtapes, que serviram de laboratório para saber que músicas é que eu ia escolher ou que caminho é que ia seguir na altura de construir o meu álbum.
PP - No início do ano, a revista "Rolling Stone Brasil" elegeu “Crisântemo” como uma das melhores músicas de 2013. Como se sentiu com tal distinção?
E - Tem uma magia maior ainda. É uma música muito pessoal, faz com que as pessoas se revejam nela. “Crisântemo” é uma música que não tem ambição comercial nenhuma. A sua estrutura está longe de ser pop. Não é uma música fácil para ser assimilada e cantada na rua. Muito pelo contrário. É uma música depressiva, forte; atira para baixo. É uma experiência de estúdio. A morte é uma temática que me encanta bastante, por andar de mãos dadas com a vida. Para nós, que vimos de uma realidade muito triste, muito pobre, a morte surge de diversas formas. E o discurso da minha mãe no tema retrata isso. Quando alguém perde o pai, acaba por perder a mãe também. Ou seja, uma morte acaba por criar outras mortes em paralelo. E toda a gente tem uma situação destas na sua vida.
PP - Sente-se mais um contador de histórias do que propriamente um músico?
E - Sejamos sinceros, eu não sou um cantor de verdade. O meu objetivo é conseguir levar as pessoas para um determinado estado de espírito, de acordo com um conjunto de palavras e com o fluxo que eu consigo criar entre elas. Eu não quero, nem tento, ser o Pavarotti (risos). A mim interessa-me muito mais contar uma história. Quero que a minha música transmita um certo conjunto de sensações, que faça com que as pessoas se identifiquem.
PP - Sente que o hip hop ainda vai crescer mais no Brasil, ou que já atingiu o pico?
E - Não sou um tipo de pessoa que fica aguardar ondas grandes. Faço música de forma profissional há cerca de dez anos, já vi ondas altas, outras mais baixas. Assisti ao surgimento de muitos grupos de hip hop, que cresceram e acabaram por tocar nas televisões e rádios. Mas depois também presenciei invernos onde grande parte desses grupos desapareceu. Eu acho que estas coisas não norteiam um género. Mas o importante é construir uma base para que o hip hop não dependa da perspetiva do mercado. Sabe porquê? Porque o mercado funciona muito por modas. Hoje é o hip hop, amanhã são os artistas pop de cabelo cor-de-rosa. É fundamental viver à margem dessas tendências. Não é que eu seja contra mainstream. Muito pelo contrário. Quanto maior e mais estruturado o nosso mainstream for, mais sólido vai ser o nosso underground. Eu acho que essas duas coisas dependem uma da outra, apesar de grande parte das vezes não dialogarem entre elas.
PP - O importante é manter as bases…
E - Claro! Há muitas pessoas que são conservadoras e que não acreditam nisso, mas eu acho que é possível um artista alcançar o mainstream e ser sincero com as suas raízes. Há muitos exemplos de músicos que, apesar de se terem tornado populares, continuaram a ser fiéis aos seus princípios. Marvin Gaye, James Brown, Public Enemy, Racionais MC’s…
PP - Wu-Tang Clan, por exemplo...
E - Sim, são um ótimo exemplo. Eles alcançaram uma distribuição enorme, mas, ao mesmo tempo, mantiveram-se fiéis. Eu acho que é perfeitamente possível. É claro que há artistas que acabam por se desvirtuar e perder o rumo quando atingem esse nível. A solução para isso é manter uma estrutura psicológica forte. Graças a Deus, eu fui uma pessoa abençoada nesse aspeto. A minha mãe tinha o hábito de ler e eu acabei por herdar isso dela. O hip hop no Brasil sempre girou muito em torno dos problemas sociais, da política, da necessidade de lutarmos por respeito. Eu cresci nesse meio, a ouvir todas essas palavras fortes. Quando chegou a minha altura de falar, quis compartilhar toda essa informação que tinha adquirido. E eu acho que é isso que faz com que um artista tenha a estrutura psicológica para chegar a algum lugar, mantendo a integridade, independentemente do olhar de terceiros.
PP - Os Dealema lançaram um álbum novo no ano passado, que contou com a sua participação num dos temas. Já conhecia o coletivo?
E - Conhecia de nome. Eu acho que o hip hop lusófono é muito carente de pontes. Ele precisa de atravessar o oceano mais vezes… Eu acredito que isso se deva muito ao facto de nós dialogarmos pouco. Essa ponte deveria ser construída com mais frequência, não só entre Portugal e o Brasil, mas essencialmente entre todos os países de língua portuguesa. Eu conhecia os Dealema de nome, mas não conhecia muito a sua obra. Nem tinha a noção de que eles eram um grupo tão importante. Fiquei muito contente por participar com eles em “Comportamentos Bizzaros”. Foi fantástico. São coisas que têm de acontecer mais, tanto aqui, como em África, como na América Latina, no caso do Brasil.
PP - O festival Terra do Rap acaba por ser um incentivo a essa troca…
E - Sim, claro. Nós, este ano, vamos ter lá artistas muitos bons, como a Eva Rapdiva, Kid MC, Sam The Kid… Eu acho que seria muito positivo o Sam The Kid produzir alguns artistas brasileiros. Ele é um artista fantástico, e seria interessante que essa ponte não se limitasse apenas aos rappers e se estendesse ao universo da produção. O festival Terra do Rap acontece com um espírito de intercâmbio muito forte. Ele tem essa força. E, já que ele leva as pessoas até lá, que se produza música e que essa música propague o português e as diversas sonoridades do português. É muito importante.
Manuel Rodrigues
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