Pode parecer parodoxal, mas não é. Sossegada entre o plácido verde de Barcelinhos e o azul tranquilo do rio Cávado, Barcelos é, nestes dias, a bucólica capital minhota da música.

São milhares de entusiastas os que convergem para a cidade, mas são calmos, motivados pelo agradável convívio e ambiente tremendamente familiar do Milhões de Festa. Não um ambiente familiar de pais com os filhos ao colo, seguidos pelos avós, mas sim no melhor dos sentidos - de partilha pura, de convívio e calma, mesmo que a banda que se esteja a escutar tenha a batida compassada da eletrónica hardcore.

O ambiente que se vive é, pois, o maior e melhor trunfo do Milhões. Daí ser bastante frequente encontrar festivaleiros que nem sequer o programa das bandas conhecem, numa escolha imediata e enamorada pelo local, e não pelo cartaz em si.

Chegadas as pessoas e o calor instalado, é altura da música tocar. Quinta-feira foi o dia em que o Palco Taina foi rei e senhor. Com programação do Barroselas Metalfest e entrada gratuita, este palco com vista para o tranquilo rio Cávado contou com atuações dos vila-realenses Serrabulho, dos lisboetas Modernos, que animaram as hostes com as suas remisturas de temas dos anos 60 e 70, seguidos por Rodrigo Amado Motion Trio e o seu brilhante free jazz, e pela mestria absoluta de Rodrigo, no seu amado saxofone tenor, que arranou a primeira grande ovação da tarde.

Com Alek Rein escutámos Pink Floyd e Syd Barrett, David Bowie e Velvet Underground, já que Rein os interpreta de uma forma particular, respirando neles a sua música e recriando algo novo e vaporoso no que ao psicadelismo toca. Já noite dentro foi a vez de se ouvirem os Iguanas (três vocalistas a mostrarem o seu disco de estreia, "Doce"), Putnam was the Bastard (noise noise noise), Ghetthoven (sensualmente acompanhado por duas magníficas bailarinas) e Putan Club, do francês François R. Cambuzat (uma mistura de Tom Waits e Swans encarnada num homem só, tocando no chão em frente à mesa do som, numa intimidade efusiva com o público).

A encerrar, numa parceria bem pensada e engenhosa, os DJ´s da casa convidaram o Dj Senhor Guimarães para terminar a noite.

Dia 2

Muito já se escreveu sobre a piscina do Milhões e ela é, seguramente, um dos bastiões de sucesso do Festival. Onde mais escutar bandas como Bispo, Dear Telephone, Riding Pânico ou Ramboiage, com os pés na água e um cocktail fresquinho na mão? Em Barcelos, com certeza!

Desta vez com organização e promoção do Red Bull City Gang, o palco da piscina inovou e brillhou pela diversidade musical que nos trouxe. Em alternância contínua com a piscina, o Palco Taina recebeu neste dia as atuações de M. Takara, Baoba Stereo Club, Puma Pumku, Mother Abyss e Soccer96.

A Jambinai coube a honra da inauguração do Palco Milhões. Seguiu-se Chelsea Wolfe. Se nos primeiros escutámos um pós-rock coreano de influência tradicional (recorrem ao arco haegeum, ao piri de sopro e à cítara coreana), com a segunda entrámos no difuso campo do song writing californiano e no surrealismo proporcionado por Chelsea, de cabelos escuros e compridos e kimono preto vestido.

Os brasileiros Boogarins também viajaram até Barcelos e na bagagem trouxeram "As Plantas que Curam" e o seu pop rock tropical, agora em digressão europeia. Eles são Fernando Almeida, Benke Ferraz, Hans e Raphael: os primeiros membros fundadores, os segundos baterista e baixista, que se juntaram ao projeto dois anos depois.

Na sua anunciada última atuação, os The Vicious Five invadiram o palco com fogo nas pernas e numa vibração constante. Cedo o público acedeu ao punk rock dos lisboetas. A banda é liderada por Joaquim Albergaria e, com dois álbuns como cartão de visita, "Sounds Like Trouble" e "Up on the Walls", deixará, com certeza, saudades.

Entretanto, o Palco Vodafone FM recebeu as atuações de Ginger & the Ghost, em estreia em Portugal, dos britânicos The Cult of Dom Keller, com os seus riffs de uma suavidade psicadélica, e Fumaça Preta, com festa tropical de jazz e funk e com o doce sotaque dos irmãos brasileiros.

Às três e meia da manhã foi a vez dos vilacondenses Sensible Soccers subirem ao palco Vodafone FM, em nítida apresentação do seu mais recente trabalho, "8". Já eram poucos os resistentes, mas todos devotos da música sensitivo-espacial que a banda orgulhosamente mostra.

Dia 3

Encontrámo-los abraçados, de mão dada, junto à piscina. Pedro e Inês, vinte e poucos anos, voaram de Lisboa rumo à pacata cidade minhota com um único propósito - o de descansarem "do frenesim e da confusão dos grandes festivais de verão". E nada melhor do que o Milhões para isso.

É, precisamente, este desafogo o que paira no ar. E, de rajada, logo a abrir, num quente final de tarde, os Cró iniciam as hostilidades no palco Taina e antecipam para Milkway Express. Guerrera, A Tree of Signs e Pterossauros foram as bandas que,neste dia, também pisaram o espaço.

Por seu lado, na Piscina, a par dos veraneantes Solar Corona, Mdou Moctar (blues africano), Memória de Peixe (repetentes no festival) e La Flama Blanca (eletrónica da festa rija) ocupam o pequeno palco e garantem sons díspares para todos os gostos.

Já no recinto principal, foi a vez dos Lay Llamas subirem ao Palco Milhões. Os italianos misturam sons africanos com kraut rock de tendência étnica. Destaque especial para Mdou Moctar, em dose dupla, depois da sua tranquila atuação na piscina. Com eles entrámos nos dúbios trilhos do rock nigeriano e isto explica muito. Por exemplo, a boa disposição e dedicação do guitarrista tuaregue.

Os Flamingods contam uma outra história. Chegam-nos de Londres e trazem com eles um rock de estética punk, com pitadas de africanismo. Uma boa surpresa.

A melhor maneira de se viver um festival é perdermo-nos nele. No Vodafone FM o dia foi de Killimanjaro, Equations, The Glockenwise, a jogarem brilhantemente em casa, Teeth of the Sea, Awesome Tapes From Africa e, já com o dia a espreitar, do DJ CVLT.

Dia 4

O dia 27 de Julho, último do festival, esteve reservado, indubitavelmente, para Earthless, de Isaiah Mitchell, nome maior do rock´n´roll e senhor capaz de nos deixar à deriva, extasiados na imensidão de um alheamento musical cósmico. Parece estranho? Não é, e só quem lá esteve pode comprovar o momento ímpar e único que se viveu. Mike Eginton, Mario Rubalcaba e Isaiah Mitchell trouxeram-nos "Sonic Prayer" e "Rhythms From A Cosmic Sky", provas maiores de psicadelismo em estado puro.

Em dose dupla, também o Palco Taina acolheu Isaiah Mitchell num caloroso início de tarde. Sucederam-se Little Cobras, Morte Incandescente, Disco las Palmeras! e The Comet is coming.

A finalizar, a Piscina Red Bull City Gang foi palco de Duquesa, Jack Shits, Zacarocha e da música seleccionado pelas Thug Unicorn.

Deixando para trás a piscina e a aquecer-nos num fim da tarde soalheiro, o brilhante Filho da Mãe, acompanhado pelo não menos brilhante Norberto Lobo, deu-nos música. Guitarras dedilhadas com mestria, num trabalho conjunto que se complementa e nos faz viajar pelos meandros da (boa) improvisação.

Young Magic, provenientes da Oceania, e Melt Yourself Down completaram o leque que pisou o palco principal do festival. Nos primeiros, os sintetizadores são reis; nos segundos, os saxofones lideram as atenções.

Num desfilar contínuo de malhas e batidas, o palco Vodafone acolheu Sequin, projeto coqueluche que antecedeu asatuações de Jagwa Music, Night Beats, Frikstailers e Nigga Fox.

O Milhões é um festival que se borda com muitos matizes, muitos fios que nos unem às bandas, muitos laços que formam o que de melhor se pode trazer de um festival de verão: a certeza de se saber que se esteve no sítio certo, à hora certa. E é por isso que, mal terminado, deixa já um doce travo de saudade.

Texto: Ana Cancela

Fotografias: Daniel Bento Ramos