Por volta de 1300, Dante Alighieri divertiu-se a imaginar como seria a vida pós-terrena, numa incursão em forma de poema à sauna do Inferno, ao stress do Purgatório e à boa vida do Paraíso. Quase setecentos anos depois, Neil Hannon apropriou-se do título desse poema épico e criou os The Divine Comedy, projectono qualse tem dedicado a inventar algumas das maiores canções da história da música pop, aliando um romantismo incurável a uma visão cómica e satírica do mundo em que vivemos.

Em 2010, os Divine Comedy voltaram aos discos com “Bang Goes the Knighthood”, onde, à semelhança do antecessor “Victory for the Comic Muse” (2006), nos presentearam com orquestrações mais contidas, isto se tivermos em conta discos como “Promenade”, “Casanova” ou “A short album about love”. Talvez por isso, não se possa dizer que seja uma surpresa que Neil Hannon tenha decidido fazer uma digressão a solo, deixando a orquestra e a banda em casa para se fazer à estrada apenas na companhia de um piano e uma guitarra.

Na noite de ontem, o Teatro Maria Matos esgotou para receber esse músico de ar franzino, barba de três dias e olhos claros, que tem sempre uma palavra de sedução na ponta da língua. Para além de um cantor e músico sobredotado, Neil Hannon comprovou os rumores de ser um entertainer do mais alto nível, que poderá sempre optar pela carreira de “stand up comediant” quando se cansar desta vida de fazer canções.

Durante quase duas horas viveu-se uma aventura entre a profunda comoção e o riso hilariante capaz de provocar lágrimas, onde apenas “Fanfare for the Comic Muse”, o «patinho feio» da discografia dos Divine Comedy, ficou esquecido.

The pop singer`s fear of the polen count ("Liberation") foi o mote para a primeira interacção com o público, tendo Neil Hannon elogiado o belo tempo que estava lá fora - noite fria e chuvosa -, que lhe fazia lembrar a sua querida Irlanda. The complete banker ("Bang Goes the Knighthood") serviu para uma actualização do estado dos mercados: “Primeiro a Grécia, a seguir a Irlanda, depois…não se preocupem, vão ficar bem”.

At the indie disco ("Bang Goes the Knighthood") foi acompanhado por palmas, depois por estalinhos de dedo, dando ao Maria Matos um ar de clube indie transposto para a Avenida de Roma. Don`t you want me baby, clássico dos Human League do longínquo ano de 1982, foi revisitado ao piano por Hannon, num momento tão hilariante que seria capaz de fazer sorrir Ramalho Eanes.

Em I only have eyes for you, original de 1934 e celebrizado por gente como Art Garfunkel ou os Flamingos, Hannon teve a companhia de Cathy Davey, uma espécie de deusa com modos de viking que tinha feito a abertura para Hannon. Em Can you stand upon one leg ("Bang Goes the Knighthood") Hannon pediu para que alguém contasse uma piada, por mais parva que fosse e, depois de muita hesitação, um espectador contou uma em que cabia um táxi, o Real Madrid e quatro lugares (liguem os pontos e construam a piada que há semanas também serviu para o Benfica). Em The frog princess, ("Casanova") música onde um sapo se transforma numa linda e deslumbrante vaca, fomos convidados a entoar a Marselhesa.

Aviagem terminou de autocarro a bordodo National Express ("Fin de Siècle"), o mais conhecido tema da banda.

Antes de abandonar o palco, Neil Hannon colocou o chapéu de coco, pôs na boca o cachimbo sherlockiano, arrumou os apontamentos na pasta universitária e, com um sorriso maroto e bastante satisfeito, despediu-se com um aceno que foi como um grande abraço. Tinha-se divertido à grande e, mais importante do que isso, tinha oferecido um pedaço de eternidade aos sortudos que ontem à noite estiveram presentes no Maria Matos. Afinal, que outro palco poderia receber melhor esta Divina Comédia?

Pedro Miguel Silva