Pedro Abrunhosa – É verdade que comecei por ter uma banda de garagem. Tinha cerca de 16 anos e tinha o mesmo sonho e ambição que as bandas têm actualmente, que era, apenas, fazer música. E trocava tudo para ir fazer música: as namoradas esperavam, as discotecas não existiam. Fosse o que fosse, era sempre deixado para segundo plano. É esse mesmo o espírito da banda de garagem: o mais importante é a música. E essa continua a ser a minha prioridade nos dias de hoje. Ao fim de tantos anos de carreira, quero continuar a ser movido pela música, quero que seja ela o meu principal motor. Agora, a dada altura, ter uma banda de garagem ou ter um desporto de garagem, ou fazer advocacia de garagem – seja o que for -, dessa forma, amadora, não é suficiente, pois o mundo é muito competitivo, o mundo não é uma garagem. Digamos que a rebeldia e a inocência próprias de uma banda de garagem são fundamentais. É fundamental manter a rebeldia, é fundamental manter a inocência. Difícil é manter essa rebeldia e essa inocência com uma formação. A formação em qualquer profissão é extremamente importante. Podes ser «de garagem» até aos 22 anos, mas, a partir dessa idade, já começas a sentir-te ridículo, se não investes na formação. Mesmo que no arranque possa não ser importante, a formação faz, realmente, falta para quem quer estar na indústria, como eu estou. A auto-aprendizagem é importante, sim, mas, a determinada altura, para quê andar à procura? Para quê perder tempo quando já está tanta coisa feita?

PP – É imprescindível, portanto, para quem quer estar na indústria discográfica, aliar à experiência de garagem uma formação científica?

PA – Não, necessariamente, científica. A formação não tem, obrigatoriamente, que ser feita numa escola, num conservatório, tal como foi feita a minha. A formação pode consistir, por exemplo, em ouvir analiticamente os discos dos outros, tirar as linhas de baixo, tocar por cima, etc. Isso já é formação. Por exemplo, eu sou completamente auto-didacta no piano. Nunca aprendi a tocar piano. E é essa mistura dos conhecimentos com a sabedoria que faz o equilíbrio. Quando és completamente académico, acabas por te tornar num músico de tradição clássica, que reproduz aquilo que está escrito. Quando és completamente auto-didacta, podes estar a reinventar a roda, algo que já está feito. O ideal é sempre a junção dos dois.

PP – Faria, hoje, as mesmas opções de percurso?

PA – Se mudava alguma coisa? Nem penso nisso, sequer. Não sou nada passadista, saudosista. Passado, para mim, não existe. Gosto de olhar sempre para a frente. Daí ter escrito a canção Fazer o que ainda não foi feito. Daí estar sempre a mudar de pele.

PP – Colocando a questão de outra forma: está satisfeito, então, com as suas opções…

PA – Sim, apesar de não haver fórmulas. Por exemplo, o Jack White orgulha-se de não ter nenhuma formação, e toca monstruosamente. Mas relembro: há formações que não são académicas, que estão relacionadas com o número de horas que uma pessoa dedica a determinado instrumento. Conheço centenas de casos assim, em que os «miúdos» passam horas e horas agarrados ao instrumento e que acabam por tocar…bem, muito bem.

PP – “Longe” foi anunciado como um “disco de ruptura”, como um “recomeço radical”. Assistiu-se, aquando do desenvolvimento do álbum, à mudança de equipa técnica, à mudança de parceiros musicais, até mesmo de som. Há quanto tempo sentia esta necessidade de mudança?

PA – Quando se tem um grupo - sobretudo na área do rock - que começa a ficar institucionalizado, tal é o reconhecimento que conquistou por parte da indústria discográfica, dos pares, dos prémios, dos media, etc., uma pessoa começa a sentir-se como uma estátua. E eu não gosto de estátuas. As estátuas são para os cemitérios e para os mortos. A necessidade de mudança era algo que já estava a sentir há já algum tempo, talvez dois anos, depois do lançamento do álbum “Luz”. E acentuou-se quando, em cima do palco, comecei a aperceber-me que a energia, a garra dos Bandemónio já não correspondia à força que eu punha, não só em palco, como na minha música. Então, resolvi mudar. E, já que estava numa de mudanças, optei por mudar tudo. Mudar a banda e não alterar mais nada seria o equivalente a mudar os secretários de estado e os ministros permanecerem os mesmos. Então, mudei a equipa técnica, os responsáveis pelo som, pela iluminação, o pessoal do backstaging, do management, mudei de agência, de produtor, etc. Mudei tudo e para gente muito mais nova, porque eu estou a ficar velho e precisava de sangue novo entre as pessoas que me acompanham. Era uma necessidade física, estética: arrebentar os pressupostos e com os dados adquiridos. Por mais incrível que pareça, chegar a um palco e ter, à partida, o público já conquistado é mau para mim. Eu gosto do desafio do público. Enfim, às vezes queremos mudar e falhamos. Ás vezes conseguimos. Fundamental é tentá-lo.

PP – Mudou tudo, contudo, declara não ter renegado nada. Que memórias guarda com mais carinho de tantos anos de carreira?

PA – São milhares de concertos, milhões e milhões de quilómetros de viagem. Não dá para valorizar nenhum momento em particular. No geral, foi tudo muito positivo. Mesmo as coisas que foram negativas, destrutivas, contribuíram para o meu crescimento, pois a vida não é feita de sucessos. A vida é feita de uma dialéctica de situação. O falhanço, à semelhança do sucesso, também faz parte do percurso.

PP – “Longe” é um álbum inteiramente gravado ao vivo. Também isso mudou. O que motivou esta opção?

PA – Antes de mais, só o gravámos ao vivo porque estamos num estúdio onde isso é possível. São muito poucos os estúdios na Europa onde tal é possível e este é um deles. Gravar ao vivo é um privilégio. Quando se grava ao vivo, capta-se a energia do grupo por inteiro, a reacção do grupo à música em si, a pujança do live. Quando se grava ao vivo, celebra-se, simultaneamente, a mesma atitude, . É este capital humano que não existe nos outros discos e que faz ser muito mais fácil transportar o “Longe” para os palcos, não tivesse ele próprio sido feito ao vivo.

PP – Afirmou, um dia, que a sua música era dialéctica: que reagia às mutações sociais, estéticas, políticas, etc. A que mutações reagiu, especificamente, o novo álbum?

PA – A nenhuma em concreto. Trata-se de um disco com muitas histórias diferentes para contar. São várias as temáticas focadas, desde a imigração (presente no tema Ai, Ai Caramba! Já fui…, que relata as peripécias dos imigrantes mexicanos que fogem para o Texas, comparando-os aos portugueses, à «geração mil euros», que vai, também, acabar por imigrar para um Texas imaginário), ao sexo (retratado na faixa Durante Toda a Noite, que relata uma noite de sexo bem passada), passando pelos arquétipos da sociedade portuguesa (focados em Rei do Bairro Alto – música que ironiza o poder que o Bairro Alto exerce sobre uma certa elite, sobre os novos ricos). Posso dizer, contudo, que se trata de um disco muito irónico. Enquanto os meus últimos álbuns foram marcados por condicionantes pessoais, tristes até – como foi a morte do meu irmão -, neste refaço as pazes com a vida, ou com a morte, e volto à ironia do Talvez Foder, do Socorro, etc.

PP – É um regresso às origens?

PA – Há, de facto, um mergulhar nas origens. Em caso de dúvidas, volta-se sempre às origens. Todos nós o fazemos. Contudo, regressa-se às origens com toda uma vivência adicional, ocorrida entretanto. É como uma árvore: as raízes serão sempre as mesmas, mas o tronco vai engrossando.

PP – O que muda quando se produz um álbum verticalmente, como afirma, orgulhosamente, ter produzido este?

PA – Muda o controlo que se tem sobre o produto final. Quando tens um produtor externo, é como se estivesses em cima de um cavalo a ser puxado por outrem, que decide que orientação lhe dar. Produzir, pelo contrário, é estar em cima do cavalo, puxá-lo quando tens que o puxar, empiná-lo quando tens que o empinar, fazê-lo saltar quando queres que ele salte, fazê-lo parar quando queres que ele pare. És tu que sentes o cavalo, és tu que comandas o seu passo, o seu trote, o galope. Ter um produtor externo é estar sempre nas mãos de outrem, dos seus gostos, das suas opções. Em “Longe” sou o dono do produto, tenho as rédeas totais sobre ele: escrevo, componho, altero.

PP – Sente-o mais seu que os registos anteriores?

PA – Este disco é muito mais meu do que os anteriores, sem dúvida. É uma afirmação. Finalmente sou dono do produto.

PP – “Longe” foi gravado em Gaia, mas masterizado nos Estados Unidos da América. Porquê?

João Bessa – Porque a masterização, apesar de ser algo muito simples à primeira vista, não o é. Masterizar é quase como passar a última camada do verniz. E nós não temos essa especialidade bem explorada em Portugal. Os Estados Unidos, pelo contrário, têm uma indústria direccionada só para essa área, não só no que respeita os meios humanos, mas também no que se refere aos equipamentos, à formação. A pessoa com quem masterizámos – o Bob Ludwig - «só» masteriza há 40 ou 50 anos, e não faz misturas nem gravações. Dedica-se, exclusivamente, à masterização. Masteriza os discos de «meio mundo», desde Madonna a Bruce Springsteen, desde Beck a Michael Jackson. Tem muitos créditos. Arrisco-me a dizer que é, provavelmente, a pessoa com mais créditos nessa área. Claro que o podíamos ter feito cá. Mas quisemos dedicar à masterização o mesmo cuidado, o mesmo perfeccionismo que dedicámos ao resto do álbum e esta pareceu-nos a solução mais adequada.

PP – Em “Luz, promoveu um passatempo com uma estação de rádio, que finalizou na gravação do dueto Pontes Entre Nós com Joana Morais. É uma experiência a repetir?

PA – Foi uma experiência que correu muito bem, mas que não vai ser repetida, como é lógico, porque não se repete o que já está feito. Foi uma óptima experiência, contudo, a todos os níveis. O público adorou. Mas as experiências que correm bem não são para repetir. As que correm mal…essas são para tentar melhorar.

PP – Como olha para a música actualmente feita em Portugal?

PA – Olho com optimismo. Acho que a escrita em português – que era uma coisa que andava fugida – está, finalmente, a ressurgir. Paralelamente a esta, ressurge também uma escola marginal - a escola dos Virgem Suta, dos Anaquim, dos Deolinda, do Tiago Bettencourt, e de tantos outros grupos que ainda se encontram dentro da garagem. A música portuguesa está, na minha opinião, a atravessar uma boa fase, apesar do mercado discográfico estar ainda a viver uma fase muito complicada. Tudo foi reformulado, acabaram-se as vendas milionárias. Mas a música, na sua acepção pura e dura, está, a meu ver, bem.

PP – A par da produção, está, também, a dar os primeiros passos na edição. Como tem corrido essa experiência?

PA – Apesar de estar no início, a experiência como editor está a agradar-me bastante. Agrada-me o papel de colocar o estúdio à disposição de bandas novas, porque eu não tive essa oportunidade, em início de carreira. Na altura, não havia estúdios. A indústria só gravava aquilo que queria, sendo que era muito complicado chegar à conversa com as editoras. A persistência ajudou-me. A sorte também, depois de ter batido a muitas portas erradas. Por isso mesmo, por ter atravessado inúmeras dificuldades, alegra-me, hoje, conseguir proporcionar essas oportunidades, essas facilidades aos projectos que querem gravar em condições profissionais.

PP – Que projectos tem, actualmente, «em mãos», no que respeita a edição?

PA – Estou a trabalhar no disco de estreia da Cristina Massena, que co-interpreta o tema Se Houver um Anjo da Guarda, em “Longe”; no disco do Guilherme Abreu; da Joana Morais; dos Varuna, entre outros projectos.

PP – Continua empenhado na revitalização cultural do Porto ou essa questão é, para si, uma causa já perdida?

PA – Não acho que seja uma causa perdida. Aliás, para mim, não há causas perdidas. Há, simplesmente, causas adiadas – adiadas enquanto estiver à frente da Câmara um indivíduo que se orgulha de não ler, de não ouvir, de não viajar, de não sair; um indivíduo que julga que sabe tudo, quando, na realidade, sabe mesmo muito pouco; um indivíduo que é um péssimo gestor da cidade, que levou a cidade à ruína, à falência política, que lhe tirou a voz, a nível nacional. As cidades são, sobretudo, vida e pessoas. Não são números nem fachadas. E esta cidade está deserta de pessoas. É uma cidade morta. A cultura é cara? Pois bem, o preço da ignorância, é um preço bem mais alto.

Sara Novais

Fotografia: Tiago Ribeiro