“Boa noite, Guimarães”, irrompe este último, já a sua versão, campeã de airplay nas rádios nacionais, de Canção de Engate, original de António Variações, traçava o seu percurso sonoro no palco do pavilhão vimaranense. Cabelo desalinhado, barba farta, postura singela, voz sedutora, quase enfeitiçada. Se há artista que pode cantar Variações sem defraudar expetativas, é Tiago Bettencourt.

“Nós hoje temos pouco tempo para tocar, por isso não vou falar muito. Normalmente, falo”, alerta, antes de se lançar a Só Mais uma Volta, single de avanço de “Em Fuga”, segundo exemplar da sua discografia a solo, sem antes acrescentar, caso dúvidas houvesse: “Eu sou o Tiago e esta é a minha banda”.

Ao piano, minutos depois, resgata Laços da segunda aventura discográfica com os Toranja, que chegou pensativa, sincera, de mãos dadas com O Jogo, ímpar na sua beleza e tranquilidade. Hipnotizante. Pó de Arroz, de Carlos Paião, da qual fez uma versão em 2008 para um disco de tributo, sucedeu-se, a par com o primeiro coro da noite. “Esta cantem comigo”, tinha pedido, soavam os seus primeiros acordes.

A cantoria continuou em Carta, sucesso maior da estreia dos Toranja em CD, com Bettencourt a completar as demandas do público quando a quando, divertido com os que aldrabavam a letra aqui e ali. “É que hoje acordei e lembrei-me / Que sou mago feiticeiro / Que a minha bola de cristal é folha de papel / Nela te pinto nua, nua / Numa chama minha e tua”, cantou-se, apaixonadamente, em cada recanto da sala. Diria o velho ditado: Podes Tirar Tiago Bettencourt dos Toranja, mas não podes tirar os Toranja de Tiago Bettencourt.

Uma simpatia e simplicidade cortantes orientam cada minuto de uma atuação turbo, “conometrada” ao minuto, que continua “Em Fuga”, num registo mais «arrockalhado», com Chocámos tu e eu, até chegar ao destino final, com Eu espero – “uma música que fala do nosso país, do orgulho que temos no nosso país, das expetativas que temos das pessoas que estão no nosso país”. Sozinho em palco, apela, interventivo: “Acorda, Portugal!”, gerando com tais palavras de ordem o maior aplauso da noite, até ao momento, iluminado por luzes das cores da bandeira portuguesa.

Antes da retirada de palco, um pedido envolto em charme: “Espero que de uma próxima vez, quando viermos sozinhos, venham todos também”. Seria mais do que merecido.

Tempo para calçar a havaiana, vestir o biquíni e beber uma caipirinha. Seu Jorge está na área. Chega vestido a preceito, já Alma de Guerreiro, criada a pedido de Glória Perez para a novela “Salve Jorge”, soava pela sala. Fato completo, reluzente, óculos de sol. What a gentleman! Como se a sua voz não fosse suficiente, por si só, para nos deixar pelo beicinho. A boa disposição dos trópicos é partilhada pela sua banda, que se alinha perante a plateia, divertida, mais do que pronta para duas horas e meia de muita – e boa – música. Juntos ensaiam passos de dança bem-humorados, ocasionalmente sensuais. Simpáticos, simpáticos, simpáticos.

Um “Alôôôô Guimarães” sentido dá o mote para Mina do Condomínio, recuperada de “América Brasil”, disco de 2007. Sem direito a pausa, surge logo de seguida, atrevida, Chega no Suingue, um dos trunfos do início da carreira a solo de Seu Jorge, que deleita fãs portugueses e brasileiros com piruetas sedutoras, que arrisca entre os primeiros passos de samba da noite.

Já sem óculos, atira-se a Pessoal Particular, sem antes agradecer à “turminha maravilhosa” que ali se juntou para o ouvir. A sua voz chega-nos grave, robusta, quase sobre-humana. Sai-lhe sem esforço e deixa-nos rendidos. Este homem destila talento. E charme. E a banda que o acompanha segue, firme, as suas pisadas.

A acalmia instala-se, pouco depois, ao som de Quem não quer sou eu, último sopro de “Músicas para Churrasco, Vol. 1”, o mais recente álbum de estúdio de Seu Jorge, editado em 2011. Duvidamos do seu potencial para animar um churrasco que se queira festivo, mas apreciamos a sua serenidade, e, claro, a exibição exímia de Seu Jorge, no final do tema a braços com uma flauta transversal. Os dotes do protagonista da noite no instrumento mantêm-se em Zé do Caroço, interpretada de seguida, que – parece-nos – começa a despertar no público, morno, alguma inquietação. “E músicas mais animadas, não?”, ouve-se algures. Calma: primeiro os assuntos sérios, depois a folia.

A declamação de “Negro Drama”, que Seu Jorge faz seguro, convicto, mostra um músico algo ressentido, melindrado por uma experiência de vida desafiante, dura, a tempos. Uma injeção da realidade ouvida atentamente por todos – banda incluída - não obstante o desejo crescente da assistência por instantes mais otimistas. Solene. Instantes esses que tardaram em chegar. Antes, “uma música instrumental dedicada a todos nós, principalmente a todos os músicos”, da autoria de Hermeto Pascoal. “Porque nada como um instrumental para homenagear um músico”.

Com direito a introdução – “Esta música foi um marco importante na minha caminhada…” – chega-nos entretanto, em jeito de agradecimento aos “irmãos portugueses”, Tive Razão, primeiro exemplar da noite de “Cru”, obra de 2004. “Muito afinado, Guimarães”, elogia Seu Jorge, atento ao público, com quem partilha a canção.

“Vocês vieram aqui para se divertirem, mas eu não podia deixar de dizer que estou solidário com a austeridade que Portugal está a viver. No Brasil, nós estamos atentos. Continuem na batalha, venham para o Brasil, nós precisamos da vossa especialização. Portugal foi muito recetivo aos brasileiros e isso deve ser recíproco”, comenta, depois de interpretar Problema Social, ainda em modo consciencializador, sentado, de guitarra ao colo, e antes de se lançar a Chiclete com Banana, gravada em 1959 por Jackson do Pandeiro e, mais tarde, em 1972, regravada por Gilberto Gil para o seu disco “Expresso 2222”. Uma música que nunca tinha tocado, havia confessado, receoso.

É isso aí, versão brasileira do tema The Blower’s Daughter, gravada por Seu Jorge e Ana Carolina para o álbum ao vivo “Ana & Jorge” encerrou, marcante, a primeira parte do concerto que minutos depois retomaria de «cara lavada», com Seu Jorge a trocar o fato pela camisa ao xadrez e boné; a substituir o semblante elegante e sedutor por uma postura descontraída, traquina; e os temas mais sérios e introspetivos por canções mais festivas e dançáveis. Picanha grelhada, farofa cozinhada: era tempo de Churrasco!

Com o tempero no ponto, foram-nos servidas, alegres, A Doida, Amiga da Minha Mulher, Mania de Peitão e a eterna Burguesinha – cantadas, escusado será dizer, por todos, a plenos pulmões. Homem que canta assim mexe com o nosso coração. Definitivamente.

E, sem darmos por ela, já estamos no encore. Tempo para «parabenizar» o casal que ficou noivo e para lamentar, também, o que se separou. “Acho que deviam conversar de novo. De cabeça quente, não. Até porque ouvi dizer que Portugal precisa de restaurar a juventude”, aconselha. Confirma-se.

São Gonça, acompanhada à guitarra e celebrada pela banda, de pé, de palmas em riste, e Carolina, segundo exemplar da noite de “Samba Esporte Fino”, fazem as delícias dos presentes, já com o samba no pé. E de samba no pé a festa continua, ao som de Mas que nada, de Jorge Ben, que o seu homónimo recorda, enérgico, feliz.

A despedida é feita em modo experimental, com Seu Jorge a brincar com a expressão “pastelzinho de Belém”, possivelmente já a pensar no dia de hoje, em que se apresentará não muito longe da terra dos irresistíveis doces, para um concerto na Meo Arena.

Bem que já estávamos prontos para mais uma dose de Seu Jorge. E vocês?

Texto: Sara Novais

Fotografia: Miguel Pereira