Palco Principal - Da última vez que falámos, disseste que era recorrente confundirem-te com o João Gil, dos Trovante. É algo que ainda acontece hoje em dia?

João Gil - Ainda (risos). Eu devia escrever um livro a compilar todas as vezes que fui confundido com o João Gil... Já cheguei, inclusive, a ser convidado para um almoço dos Trovante, via Facebook. Educadamente, agradeci o convite e disse-lhes que não era a pessoa que eles estavam à procura. Rimo-nos todos da situação e acabou por se gerar ali um ambiente porreiro. Acontecem-me histórias destas pelo menos uma vez por mês...

PP - Lançaste este mês o teu álbum de estreia, “O Dia Em Que Todos Acreditaram”. O que queres transmitir com este título?

JG - “O Dia Em Que Todos Acreditaram” é a fase da história do Vitorino Voador em que ele deixa de ser um super- herói desconhecido para passar a ser aquele herói com o qual toda a gente conta e em quem toda a gente acredita. Incluíndo eu.

PP - O single de avanço, “Venha Ele”, é-me familiar: lembro-me de o ter ouvido ao vivo na última festa da Azáfama, no Teatro do Bairro. Qual a razão desta escolha?

JG - “Venha Ele” já existia na altura do EP. Recordo-me de o ter interpretado nas duas festas de aniversário da Azáfama. No primeiro ano, a solo; no segundo, com banda. Este tema acabou, inclusive, por substituir muitas vezes a “Carta de Amor Foleira” nos meus concertos, por já estar farto de a tocar ao vivo. Foi então que comecei a perceber que gostava mesmo dele, por isso fez todo o sentido esta escolha para single. Falei com o Noiserv para que injetasse umas ideias porreiras na música. Ele gostou da ideia e acrescentou uns teclados e umas guitarras com ebow, que ficaram espetaculares.

PP - Noto que apostaste numa textura diferente para o teu novo disco, certo?

JG - Sim. Eu quis que este disco corrigisse alguns problemas que eu tinha sentido no EP. Apesar de não ter sido gravado nesse formato, quis que fosse um disco de banda. E a ideia é respeitar essa característica ao vivo.

PP - E conseguiste incluir as músicas todas que tinhas idealizado, ou tiveram que ficar algumas de fora?

JG - O disco é composto por nove temas. No início, eram para ser mais, mas o João Correia Mendes (Capitão Capitão) ajudou-me bastante nessa seleção. Nisso e não só.Toda a parte gráfica, a imagem, foi tratada por ele. O João teve um papel importantíssimo no meu disco: acabou por se transformar numa espécie de conselheiro/bússola. Então, fui ter com ele e mostrei-lhe o meu disco. Ele, na altura, disse-me que gostou de tudo, excetuando o alinhamento. Assim sendo, reorganizou as músicas, enviou-me de volta e eu ouvi. Na primeira audição, soou-me estranho; na segunda, comecei a habituar-me; na terceira, foi o meu alinhamento que deixou de fazer sentido. No meio disto tudo, houve músicas que acabaram por saltar fora. E ainda bem, pois, atualmente, sinto que o resultado final está mais coeso.

PP - Apesar de ter sido gravado em Portugal, o teu álbum foi misturado e masterizado no estrangeiro. Há alguma razão em especial para tal escolha?

JG - Não há nenhuma razão especial. Há pessoas que o fazem por acharem que lá fora é que é a grande cena. Não. Eu acho que cá temos gajos tão bons como lá fora. A razão não foi essa. Neste disco, quis manter-me completamente à margem de todo o processo de mistura e masterização. Já tinha cometido esse erro no EP. Arrependi-me completamente. Há pouco, quando dizia que me tinha fartado de tocar o meu single nos concertos, foi derivado a isso. Fiquei traumatizado com a música. E isto, dito assim, até pode chocar aqueles que gostam da música, mas a verdade é que, na altura, decidi que seria eu a tratar de todo processo de edição e mistura, algo que era novidade para mim – nos meus outros projetos, compunha, entrava em estúdio, gravava, ia-me embora e, passado uns tempos, os discos apareciam feitos. Nunca tive que me preocupar com tal coisa. Mas, dessa vez, quis experimentar ser eu a fazer tudo isso. Nunca pensei que se tornasse em tamanho pesadelo. Cheguei a um ponto em que já batia com a cabeça nas paredes. A cada minuto que passava, começava a reparar em pormenores de afinação, ritmos fora de tempo... Então, para resolver, comecei no corte e costura... Dei por mim a regravar vozes, baterias, tudo e mais alguma coisa. Mudava a tarola, parecia-me que o baixo estava a soar mal; mudava o baixo, parecia que não encaixava com o teclado. Às tantas, já tinha mudado tudo e já era a voz que estava mal. E isto tudo em contra-relógio, pois tinha que entregar a música no dia a seguir. Fui salvo por um técnico de som incrível, o Tiago Sousa, que me fez uma mistura em cerca de meia hora. A música avançou, tornou-se single do meu EP e, como deves calcular, não tenho assim grande relação com ela. Serviu-me de lição. Por isso, para este disco, decidi deixar tudo nas mãos de terceiros. Na altura, sugeriram-me enviar o disco para Londres, e assim foi.

PP - Fala-me um pouco sobre a capa do teu disco e o novo logótipo... Reparo que já não se assemelha ao dos Van Halen [ver última entrevista de Vitorino Voador para o Palco Principal].

JG - Já não é Van Halen (risos). Mas continua com uma ligação à história do Vitorino Voador, ao super-herói. Gosto de ver as coisas a evoluir. Percebo que seja estrategicamente inteligente um artista – ou uma marca – ter um logo fixo, pois cria hábito nas pessoas. Mas eu também não sou os Metallica, nem pouco mais ou menos, e, sinceramente, gosto da mudança. Este novo logo, para mim, está incrível. Estou muito contente com o resultado. O João [Correia Mendes] teve essa visão, não sei se derivou de alguma conversa entre nós ou assim, mas ficou brutal. Tens os dois Vs que eu queria que estivessem lá (não queria nada escrito na capa). Depois, tens a fotografia da multidão, que era uma coisa que eu achava que fazia sentido. Queria que as pessoas olhassem e se questionassem acerca da imagem.

PP - Por acaso, associei a multidão aos filmes antigos de super-heróis. Tipo “Flash Gordon”...

JG - Na minha cabeça, não é uma ideia que está fechada. Não digo que esteja errado, nada disso. Podes interpretar como achares mais bonito - e eu gosto de ouvir esse tipo de interpretações. Eu sou uma pessoa que gosta bastante de banda desenhada e de super-heróis, é normal que haja algum tipo de associação.

PP - O que te inspira a fazer música e a escrever letras?

JG - Dizer-te que há uma coisa que me inspira seria estar-te a mentir. Existem, isso sim, muitas coisas que me inspiram. Ainda ontem ouvi uma música d’A Banda Mais Bonita da Cidade, chamada “Oração”. Fiquei maluco, como já não ficava há anos – a última vez aconteceu quando ouvi “Between The Bars”, de Elliot Smith. É linda. Daquelas músicas que te dão vontade de chegar a casa e compor. É uma fonte de inspiração. Inspira-me estar com as pessoas e ter conversas positivas que transmitam boa energia. Inspira-me esta conversa que estamos a ter. O facto de seres uma pessoa ligada à música e estares a demonstrar interesse naquilo que faço serve-me de inspiração. Há tantas outras coisas... Gosto de surfar, por exemplo, apesar da falta de tempo...

PP - Com tantos projetos, calculo que seja complicado teres tempo livre para praticar qualquer desporto que seja... Como é que te consegues desdobrar a nível musical?

JG - Consegue-se fazer. Se todos os grupos em que participo tivessem a mesma quantidade de trabalho que eu tenho, por exemplo, com os Diabo na Cruz, seria impossível. Não haveria horas suficientes no dia para conseguir dar atenção a todos. Só que eu não vivo nos Estados Unidos, onde uma banda, ao invés de dar 20, dá 250 concertos. É um país cuja dimensão te possibilita ires de uma ponta à outra, a tocar em bares e em clubes. Cá, infelizmente, o país não nos permite ter essas datas todas. Não conseguiria atingir esse número de concertos, nem que juntasse os meus projetos todos.

PP - E consegues viver apenas da música?

JG - Não sou nenhum milionário, mas sim. Consigo pagar as minhas contas, comer... Vai dando. Conheço muita gente que não vive da música, não por não conseguir, mas por não gostar dessa forma de viver. Com a música, também vem alguma insegurança. Não podes contar com 1500€ todos os meses, como se tivesses um ordenado fixo. Se calhar chegas a agosto e tens muitos concertos, mas depois tens poucos nos restantes meses. Nem toda a gente consegue aceitar e viver em paz com isso. Eu, como nasci familiarizado com o meio – o meu pai era músico, tornou-se produtor musical e nunca teve um ordenado fixo –, vejo isso como uma coisa normal. Tens que ser um pouco mais cuidadoso. Se ganhaste pouco numa determinada altura, não vais fazer certas despesas...

PP - Continuando no campo da inspiração, até que ponto é que a “vida de estrada” com os Diabo na Cruz te inspirou enquanto músico?

JG - Os Diabo na Cruz foram uma mudança radical na minha vida. Até então, era músico, dava os meus concertos, mas nada de muito especial. Estava a estudar ainda, a acabar o meu curso de piano e guitarra. E os Diabo surgiram numa altura em que eu realmente precisava de uma mudança, de algo que me fizesse acreditar que esse era o caminho certo. Porque um gajo dizer que é músico, quando está a estudar e a dar uns concertos aqui e ali, soa um pouco a conversa de xaxa. Os Diabo mudaram a minha vida nesse sentido. De repente, passei da solidão do meu quarto para a formação de uma banda que dá 80 concertos por ano, a andar de um lado para o outro. Com os Diabo tive isso tudo. E fizeram-me acreditar na música. Foi um sonho tornado realidade. O primeiro ano com os Diabo foi indescritível. E continua a ser. Mas já lido com isso de outra maneira. No fundo, todas as bandas com as quais estou envolvido são importantes.

PP - E esses teus projetos todos ajudaram-te na forma como encaras, atualmente, o palco?

JG - Fizeram-me crescer, claro. No entanto, são situações diferentes, pessoas diferentes e isso nunca pode ser copiado. Eu olho para o Jorge [Cruz, vocalista dos Diabo na Cruz] como um frontman incrível, um gajo que agarra as pessoas de uma maneira... Tanto pela música como pela forma como comunica com o público. Olho para o David Jacinto [vocalista dos TV Rural] como um monstro de palco. É outro gajo que sabe agarrar a plateia e tirar o máximo proveito dela. Eu tenho a minha forma de lidar com o público. O meu projeto a solo acabou por me ensinar tudo aquilo que eu não sabia até então: ser um frontman, dar a cara, lidar com as pessoas...

PP - Reparo que tentas imprimir algum humor aos teus concertos. Lembro-me de uma música que interpretaste uma vez, numa das festas da Azáfama... Tinha a ver com um roubo...

JG - Ah! Já me lembro! É a “Balada Dos Filhos da Puta”, uma música que fala de muitas coisas, mas, acima de tudo, de um assalto na Bica. Foi um momento muito forte, marcou-me bastante, por me ter achado incapaz de proteger a minha namorada. Lembro-me que chegámos ao meu carro, por volta das quatro ou cinco da manhã, e estava um gajo lá dentro. Percebi o que se estava a passar e comecei a gritar com ele. Só que não sabia se ele estava armado ou não. E, além de não saber isso, não sabia, também, se ele tinha mais alguém a controlar as redondezas que pudesse intervir. Fiquei ali num misto de sentimentos. Não sabia se havia de fugir ou saltar para cima dele. Agora, a esta distância, penso que o melhor teria sido fugir, pois nunca se sabe o que podia ter acontecido. Gritei, e ele acabou por ir embora sem levar nada. Tudo acabou bem. No entanto, cheguei a casa com uma raiva e uma angústia interior, por pensar que podia ter feito alguma coisa... E eu não sou uma pessoa violenta, sabes? Mas, naquela altura, senti que estavam a violar o meu espaço, a minha propriedade. No fundo, senti-me ameaçado. Aquilo mexeu comigo e comecei quase a transformar-me numa pessoa que eu próprio não conheço. E a pensar em coisas que não queria estar a pensar. Então, escrevi as primeiras palavras que me vieram à cabeça, o que acabou por passar as energias negativas para dentro daquela música. Comecei a tocar a música ao vivo quase como terapia e comecei a ver que as pessoas até se divertiam com ela. Rio-me com as pessoas, as pessoas riem-se com a música, e pronto.

Manuel Rodrigues

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