“Visão Clara” é um trabalho amadurecido, esclarecido, mas também é um álbum virado para dentro, que mostra o rapper num registo diferente daquele que pudemos observar nas suas obras anteriores, principalmente em “Conhecimento” e “Outros Tempos”. “Sinto que é um álbum mais introspetivo”, confessa o MC de Porto Salvo, que continua: “Nestes últimos dois anos estive um pouco isolado, não foi uma altura em que saísse muito, ou convivesse muito… Estive um pouco fechado em mim". "E isso, se calhar, reflete-se um pouco no álbum”, conclui. Numa entrevista ao Palco Principal, o músico falou sobre o seu álbum, as músicas que o polvilham, e ainda fez um rescaldo do concerto que deu no dia 14 de fevereiro, no Musicbox, em Lisboa.

Palco Principal - Na introdução ao teu disco, expressas-te num formato praticamente inexistente nos teus trabalhos anteriores, o de discurso livre, sem beat, acompanhado apenas por uma melodia de fundo. O que te levou a optar por tal registo?

Xeg - Eu, ao vivo, costumo fazer muitas a cappelas, porque resulta muito bem - faço isso principalmente com temas novos, músicas que acabei de escrever, devido ao facto de ainda não terem instrumental. Então decidi experimentar algo semelhante em álbum. E, como não tinha bem a certeza se havia de acompanhar o sample com batida ou não, decidi deixar apenas aquela melodia a acompanhar a letra.

PP - A dada altura desse mesmo tema, dizes não ter editora, porém, "Visão Clara" saiu através da Valentim de Carvalho...

X - Eu, quando digo que não tenho editora, não é bem nesse sentido. Na verdade, eu tenho. Sempre lancei os meus álbuns através de uma editora, mas não é algo em que eu esteja a pensar durante o meu processo de criação. Este álbum saiu pela Valentim de Carvalho, mas eu já o tinha pronto desde o ano passado, só comecei a “negociar” com eles no final de novembro… Já tinha escolhido o single, já tinha o vídeo feito… Só depois de ter o CD pronto é que tento que ele tome a melhor direção, que chegue ao maior número de pessoas. E, para que isso aconteça, convém que ele seja distribuído por uma boa editora.

PP - Atualmente, sentas-te a construir um álbum de raiz, ou vais juntando músicas ao longo do tempo e só depois é que partes para estúdio?

X - Sabes que eu, quando faço músicas, nunca é com a intenção de construir um álbum. Vou fazendo canções e só depois, quando já tenho um bom número de temas nos quais eu acredito, é que avanço para um álbum. Eu, na verdade, tinha mais músicas. Entraram 12, podiam muito bem ter entrado 16, ou mais…

PP - Para além de ti, quem mais é que podemos encontrar nos créditos de produção deste trabalho?

X - Tenho álbuns que contam com algumas participações a nível de produção, mas este foi inteiramente produzido por mim.

PP - Sinto que há muitas coisas neste disco que são tocadas, certo?

X - Em todas as músicas toco coisas com os sintetizadores, no entanto, há temas, como o “Sonhos”, “Ilusão” e "Felicidade", que têm um baixo e guitarras tocados pelo David Leitão. Ainda não sou músico, ainda não sei as notas nem nada, o que faço é de ouvido...

PP - Às vezes funciona um pouco por intuição…

X - Sim, só que muitas vezes cortas os samples e mudas o pitch, o que faz com que a nota já não seja a certa, ou seja, já não consegues chegar lá com o sintetizador. Então tem de ser mesmo tocado por um instrumento específico e por alguém que saiba, para conseguir a afinação correta.

PP - Sempre foste um especialista em storytellings...Lembro-me, assim de repente, do tema "Nesse Dia"... Porém, desta vez, não recorreste a tal formato. Por alguma razão em especial?

X - Tenho o tema “Já Vi Esse Filme”, que conta uma história, mas não tenho, de facto, esses storytellings a que te referes. Não há nenhuma razão em especial, simplesmente não aconteceu...

PP - E também não encontramos músicas relacionadas com mulheres...

X - (Risos) Por acaso, já não és a primeira pessoa que me faz tal pergunta! Já me perguntaram se não havia um “Verão Passado”, um “Susana” ou um “Mariana”. Eu tinha uns temas sobre o assunto, mas decidi não pôr...

PP - Mencionaste há pouco o tema "Já Vi Esse Filme"... Fala-me um pouco sobre essa música e a temática que abordas...

X - A minha geração foi muito castigada pela toxicodependência, quase toda a gente que viveu nessa altura tem amigos e familiares que passaram por isso. As gerações que se seguiram, muito devido ao facto de assistirem a esse tipo de degradação, tiveram algum receio de se envolver nesse mundo. E eu acho que agora, como se deixou de ver tanto esse cenário, as novas gerações podem já não saber o que é que esse envolvimento origina. Esta música é uma espécie de alerta, pois a história tem tendência a repetir-se. Eu lembro-me de algumas pessoas que, na altura, se tornaram toxicodependentes: eram os mais malucos, apanhavam grande trips e, passados uns anos, acabaram a montar barraquinhas no Casal [Ventoso]…

PP - A letra do teu single “Sonhos” é uma tremenda injeção de energia positiva. Neste paradigma de crise que nos assombra o quotidiano é importante sonharmos?

X - É a única coisa que nos resta. Se um dia perdermos isso, ficamos sem nada. Se nós deixarmos de sonhar e de acreditar que as coisas vão melhorar, aí é que não mudam mesmo. Eu comecei a escrever essa música no final de 2010, só que tive de fazer algumas alterações e só a terminei no ano passado, no entanto, está muito atual. É como a crise: eu oiço falar dela desde miúdo, tinha 11/12 anos... É uma condição natural do sistema capitalista.

PP - Em "Música", voltas a escrever uma dedicatória à tua grande paixão. Até que ponto é importante para ti fazeres este tipo de abordagem?

X - Essa música até tinha três partes, não apenas duas - era um tema de sete minutos e tal. A segunda parte era, assim, meio violenta, relacionada com cenas que eu tive, mas resolvi tirar, para não a tornar tão pesada. Assim sendo, a primeira parte é uma visão mais pessoal, a nível de sentimentos, e a segunda (que, inicialmente, era a terceira) fala de inveja e de pessoas que eu conheço que não lidam muito bem com certas coisas... No fundo, quer dizer que, como todas as pessoas, tenho os meus problemas e que a música acaba por ser o meu escape, o meu porto de abrigo.

PP - E, como músico inserido no mercado português, é possível viver-se dessa paixão?

X - Viver só e apenas da música é difícil… Bastante, até. Eu nunca consegui isso. Consegui na perspetiva de que, se eu não fosse rapper, também não conseguia ter atividades paralelas, como dar aulas de hip hop [não de dança, mas sim de música e cultura]. Não vivo da música no sentido de dar concertos e vender CDs, mas vivo da música na globalidade.

PP - Tenho reparado que de trabalho para trabalho tens evoluído bastante no campo da rima, no domínio da palavra. Tens sempre essa preocupação de regressares cada vez mais forte, não é?

X - O “Egotripping” foi uma mixtape que me deu bastante prazer fazer, pois mudou a minha forma de escrever. Hoje em dia não me sento com a ideia de escrever uma letra, vou guardando dicas na cabeça, e vou vendo a melhor forma de casar as palavras, de fazer rimas duplas. Se eu tiver uma frase que acaba em “mundo à parte”, não vou procurar rimar apenas com “arte”, se calhar vou procurar dizer “fundo da arte" ou “profundo amar-te”, por exemplo. Procuro sempre fazer uma estrutura dupla, e essa mixtape ajudou-me a exercitar tal técnica, que agora me serve de base a tudo aquilo que faço. Tenho sempre esse grau de exigência. Dou-te o exemplo de "Vou Deixar Que a Vida Me Fale”, um tema que foi escrito em 15 minutos, numa altura em que eu estava num estado assim meio depressivo, que usa e abusa desse esquema de rima dupla. O teu cérebro habitua-se e a escrita acaba por sair de forma automática. A métrica é muito importante no MCing. É claro que uma pessoa que se identifique e goste da minha música não está ali a pensar se a rima que está a ouvir é cruzada ou emparelhada, mas nós, MCs, damos importância a isso. Eu, às vezes, até fico chateado quando oiço alguém que é MC dizer que as rimas não têm nada a ver, que o que interessa é transmitir o que se sente. Com certeza, mas as pessoas que vão no autocarro a falar também estão a dizer o que sentem, no entanto, isso não faz delas rappers. Se é assim, então até escusam de rimar. Escrevam em prosa, ou então até escusam de fazer música.

PP - A apresentação oficial de "Visão Clara" deu-se no passado dia 14 de fevereiro, no Musicbox. Como é que correu?

X - Correu bem, tive casa cheia. Basicamente, fiz a apresentação do álbum, na íntegra, com os convidados, seguindo o próprio alinhamento, e, no final, ainda cantei três ou quatro músicas de outros álbuns, fiz umas a cappelas…

PP - E próximas datas?

X - Vou fazer dois showcases na Fnac, no dia 28 no Colombo e no dia 7 no Chiado, e no dia 8 vou estar no Santiago Alquimista.

PP - Recentemente, estiveste no Brasil, na companhia de Allen Halloween, Nel Assassim, Dama Bete e do jornalista Rui Miguel Abreu, a representar Portugal no festival Terra do Rap. Como é que foi a experiência? Sentiste que eles estavam a par da cena portuguesa?

X - Eles conheciam bem... Sabes que eles não têm a mesma facilidade de nos perceber como nós os percebemos a eles... Mas sim, foi uma boa experiência. Apesar de eles não nos perceberem na perfeição, gostaram dos nossos espetáculos. Eu também gostei, conheci uma data de rappers que nunca tinha ouvido na vida. Também não estava muito a par do movimento no Brasil, conhecia apenas aqueles artistas que saíam mais cá para fora. Nós andámos no Rio de Janeiro, fomos a várias escolas e comunidades fazer workshops de hip hop, o que me levou a conhecer várias pessoas fora do ambiente de concerto, deu para conhecer outras realidades.

PP - E que rappers é que aconselharias ouvir?

X - Aconselho Bob-X, Nyl, Xará, Akira President... Depois de ouvires uns, começam-te a aparecer ligações para outros. É uma questão de procurar.

Manuel Rodrigues