Capicua (Ana Fernandes) recorda-se de ouvir as canções de Sérgio Godinho desde que se lembra “de existir”. “Era uma coisa que se ouvia muito em casa. O disco que tenho mais memória de infância é ‘Os Sobreviventes’, que faz 50 anos agora, e até hoje o meu favorito porque tem essa memória afetiva”, recordou, em declarações à Lusa, partilhando que a voz do cantor era “tão familiar” que a sentia como a de um amigo dos pais.
Desde o primeiro álbum, “Capicua” (2012), a rapper tem feito uma “revisitação” do trabalho de Sérgio Godinho. A mais recente foi uma “apropriação do tema ‘Parto sem dor’”, em “Madrepérola”, álbum que editou em 2020.
Em “SG Gigante” decidiu “propor as outras pessoas que fizessem o mesmo”, levando o cancioneiro do músico “para outros universos musicais, nomeadamente no âmbito da eletrónica e do hip-hop”.
“Um bocado continuarem o exercício que eu venho fazendo, misturando o cancioneiro do Sérgio com hip-hop, com o meu rap em específico”, contou.
O convite para que Capicua pensasse um álbum de homenagem a Sérgio Godinho, que definiu que não seria “um disco só de versões”, partiu da editora Universal Music Portugal e da equipa do músico.
O processo de criação de “SG Gigante” começou pelo convite a produtores (Keso, Charlie Beats, Stereossauro, FMX & Migz, DJ Ride e Branko), que são “o início de tudo”.
Para que os produtores tivessem à sua disposição ‘samples’ nos quais pudessem “pegar livremente”, “foi feito um levantamento do que havia disponível em bobine, em digital, digitalizar o que havia em bobine, perceber o que havia em pistas”.
A lista dos ‘samples’ disponíveis foi passada a todos, “para escolherem a canção” que iriam trabalhar. “Com alguns houve trabalho de ‘brainstorming’, outros escolheram sem conversa nenhuma partilhada comigo, porque já tinham muito clara a canção que queriam trabalhar”, recordou Capicua.
Após a escolha dos produtores e dos temas (“Que força é essa”, “O primeiro dia”, “Etelvina”, “Com um brilhozinho nos olhos”, “Lisboa que amanhece” e “A noite passada”), “foi-se construindo o resto da equipa, de forma democrática, sem impor nada a ninguém, com uma grande preocupação em ter uma equipa muito diversa”.
“Era importante para mim que houvesse muita diversidade, porque acho que o Sérgio, ao longo destas cinco décadas, foi trabalhando muitas sonoridades diferentes e colaborando com pessoas muito diferentes”, explicou.
O disco conta com a participação de rappers e cantores “homens e mulheres, de várias zonas do país, alguns deles com origens nos PALOP [Países de Língua Oficial Portuguesa]”, de várias gerações.
“Ter o fado seria importante, um apontamento de música com relação com África, também, com essas lusofonias todas misturadas. Para que esse exemplo do Sérgio de grande diversidade, criatividade e abertura a outras linguagens fosse honrado. E também o seu compromisso com a Liberdade, a Igualdade. Enquanto músico e pessoa pública, ele tem honrado sempre os valores do 25 de Abril e para mim era importante que fosse um projeto inclusivo”, referiu.
Para Capicua era muito importante ter rappers no álbum, porque a ideia “era ter letra original”.
“Há uma única versão no disco, a do Branko com o Dino D’Santiago e a Rita Vian, que é também a única que não tem um rapper”, disse.
Capicua lembra que Sérgio Godinho “é conhecido por escrever super bem, por trabalhar muito bem as personagens, por contar histórias, por contar micro-histórias que depois contam a nossa história comum”.
“Eu acho que isso se relaciona muito com aquilo que os rappers fazem: inventividade lírica, polivalência de temas, inventividade métrica, trabalhar os jogos de palavras, ter uma cadência inesperada na forma de dizer, ritmos, rimas, sons e jogos de palavras. É algo comum ao universo do rap e ao Sérgio Godinho. Os rappers estão permanentemente a contar histórias, a fazer a reportagem do quotidiano, que está muito presente na escrita do Sérgio. [Por isso], achei que era interessante termos letras novas”, afirmou.
Desta maneira, acrescentou-se ao cancioneiro de Sérgio Godinho, “novas abordagens líricas”.
Há letras que são praticamente todas novas, como “Que força é essa”, que do original ficou a frase que lhe dá título “e a partir daí construiu-se uma canção que fala do mesmo tema, se calhar de forma um bocadinho mais direta e mais contemporânea”.
Já em “Lisboa que amanhece”, Eu.Clides “canta o refrão da canção original” e EvaRapDiva e Chong Knowg “fizeram uma letra nova”.
O álbum conta também com a participação, entre outros, da fadista Sara Correia, da cantora Amaura, dos rappers Valas, Papillon, Russa, Nerve e Phoenix RDC, e do próprio Sérgio Godinho.
“Achámos que seria bonito que o Sérgio desse o mote a cada canção, declamando um excerto da letra que ele quisesse destacar. Haver a voz do Sérgio, ‘a capella’ em vinil, permite que os DJ no futuro, se quiserem voltar ao analógico e fazer ‘scratch’ com a voz do Sérgio tenham essa oportunidade”, partilhou Capicua.
“SG Gigante” foi “um trabalho de muitos meses”, para ir “construindo o puzzle”, que a ‘rapper’ considera ter resultado “muito bem”.
Capicua “gostava muito” que o disco, disponível na sexta-feira nas plataformas digitais e no sábado em edição física, fosse apresentado ao vivo, mas admite que “a logística não seja fácil”.
“Acabaram por ser escolhidos quase só clássicos, era bom poder ver [o disco] crescer ao vivo”, disse.
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