Carlos do Carmo decidiu que “é altura de acalmar” e por isso diz adeus aos palcos no próximo sábado com um espetáculo no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, onde começou a cantar há 57 anos.
Sublinhando que a saída “é só de cena, dos palcos”, Carlos do Carmo, em entrevista à agência Lusa, afirmou que a decisão “não foi difícil” de tomar, “foi pensada” e "este era o momento”.
“Tomei-a no ano passado. São 57 anos a cantar, quase no mundo inteiro. São poucos os países onde não cantei. Foi muita viagem, [foram] muitos hotéis, muitos palcos, é muita coisa e é uma altura boa de acalmar. E como gosto muito de ouvir cantar bem, ainda me vou desforrar a ouvir quem canta bem”, disse o fadista à Lusa.
“Quem fizer uma carreira como eu fiz -- e há gente da nova geração, felizmente, que a está a fazer --, com ar paternalista, recomendo: 'cuidado com a tua saúde, vai, faz, tens todo o direito, quanto há vento é que se molha a vela, mas muito cuidado com a tua saúde, estas coisas da saúde não avisam e quando tu estiveres mal é que vais ver que o esforço é inglório'”, disse.
Carlos do Carmo recusa-se a salientar qualquer uma das salas onde já cantou, “pois seria até ingrato, não era justo estar a escolher um ou outro”, mas salientou “o peso da emigração”, que sempre o recebeu “como um rei”.
“Passei momentos muito bonitos em grandes salas, em salas mais modestas. Às vezes estava em Paris e aparecia alguém que me perguntava se eu não me importava de ir cantar ao seu restaurante com os meus guitarristas, e eu ia cantar para 50/60 pessoas, e isso dava-me muito prazer, não tive esses preconceitos”, declarou.
O fadista afirmou que “é muita coisa vivida, [são] muitas experiências”, num percurso profissional de 57 anos.
Carlos do Carmo, distinguido em 2004 com um Grammy Latino de carreira, cantou no Olympia e no Auditório Nacional, em Paris, no Le Carré, em Amesterdão, no Place des Arts, em Montreal, no Canadá, nas óperas de Frankfurt e de Wiesbaden, na Alemanha, no 'Canecão', no Rio de Janeiro, e no Memorial da América Latina, em S. Paulo, no Brasil, no Royal Albert Hall, em Londres, entre muitas outras salas.
O 25 de Abril de 1974 deu-lhe “uma alegria imensa”, nomeadamente porque pôs fim à censura.
“Olhando para trás, nós podemos dizer mil coisas da ditadura. Há quem tenha grandes razões, porque foi maltratado, preso, torturado, o cinismo que havia por detrás disso tudo [dessa violência]. Agora não há coisa mais estúpida e [maior] agressão à inteligência que é a censura”, sentenciou o fadista que se afirma “um homem de esperança”, defensor do diálogo entre gerações, que acredita que "o futuro será melhor".
“Há uma coisa que é segura, a loucura que está aí instalada, que não é pouca, parece que o mundo endoideceu. Isto é um ciclo. Não sei se o vou ver melhor, mas que os meus filhos e os meus netos vão, não tenho dúvidas”, afirmou o fadista à Lusa.
Referindo-se ao concerto, já esgotado, do próximo sábado, na sala das Portas de Santo Antão, Carlos do Carmo disse que foi “todo construído” pelo filho Alfredo de Almeida, que é o seu agente, o que lhe acontece pela primeira vez na carreira.
“Não dei um palpite. Nunca me aconteceu na minha carreira, pois sou sempre eu que faço o guião, o alinhamento”, enfatizou, acrescentando que os dois concertos anteriores, em Braga e no Porto, “correram muito bem”.
A acompanhá-lo vai estar um trio já habitual, composto por José Manuel Neto, na guitarra portuguesa, Carlos Manuel Proença, na viola, e Marino de Freitas, na viola baixo.
Carlos do Carmo, que completará em dezembro 81 anos, é, segundo a “Enciclopédia da Música em Portugal no Século XX”, uma “figura marcante no estabelecimento de mudanças na tradição fadista", sendo uma das “suas maiores referências, com reconhecimento nacional e internacional”.
Filho da fadista Lucília do Carmo (1919-1998), “uma das vozes mais marcantes” do fado no século XX, segundo a mesma fonte, Carlos do Carmo cresceu num ambiente fadista. Desde 1947 que sua mãe era proprietária da casa de fados Adega da Lucília, no Bairro Alto, em Lisboa, atual Arcadas do Faia, que passou a ser gerida por Carlos do Carmo em 1962.
Este não era o plano traçado para si pelos pais que, em 1956, o enviaram para a Suíça para estudar línguas e gestão hoteleira.
A vocação musical despertou porém em 1963, quando gravou um fado da sua mãe, “Loucura”, num disco do Quarteto de Mário Simões.
Carlos do Carmo revelou, ao longo da carreira, “uma voz límpida e uma dicção clara cuidadosamente ajustada ao sentido dos poemas”, segundo a Enciclopédia dirigida pela etnomusicóloga Salwa Castel-Branco, onde se lê ainda que as alterações que fez no fado foram influenciadas pelos seus gostos musicais que incluem referências da bossa nova, de Frank Sinatra e Jacques Brel, de quem gravou “La valse a mille temps”.
Depois do 25 de Abril, tornou-se “o representante máximo do fado novo”, segundo a mesma fonte.
O artigo que lhe é dedicado na Enciclopédia recorda que em 1976 a RTP o convidou a interpretar todas as canções concorrentes ao Festival da Canção, “Uma canção para Europa”, o que “confirmou a sua posição de destaque no panorama musical português”.
Carlos do Carmo representou Portugal no 21.º Festival da Eurovisão, realizado em Haia, com “Uma Flor de Verde Pinho”, tendo-se classificado em 18.º lugar.
No ano seguinte saiu o seu álbum “Um Homem na Cidade”, totalmente constituído por poemas de José Carlos Ary dos Santos (1937-1984), musicados por José Luís Tinoco, Paulo de Carvalho, Martinho d’Assunção, António Victorino d’Almeida e Fernando Tordo.
Este álbum “apontou diferentes tendências que vieram a verificar-se como agentes da mudança da tradição musical do fado”, assinala a Enciclopédia, que realça “algumas inovações musicais notáveis”, mantendo a estrutura harmónica tonal.
Esta obra refere “a produção de elevada qualidade técnica” de Carlos do Carmo, patente nos seus trabalhos.
Carlos do Carmo tem gravado com regularidade desde 1980, quando saiu um álbum homónimo, e ainda não disse adeus aos estúdios.
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