David Byrne sempre foi um artista ligado ao mundo: o seu regresso aos discos a solo ao fim de 14 anos, com o recente “American Utopia”, veio inserido em algo maior. Como o mais otimista dos habitantes do mundo Ocidental sabe, há uma grande crise por aí – política, ambiental. Mas, segundo o músico norte-americano, há motivos para sorrir: “Reasons to Be Cheerful” é o título que reúne a sua forma de interagir, aos 66 anos, com um planeta que parece à beira do abismo. Como se poderia esperar, no entanto, Byrne trouxe mais a Cascais do que boas vibrações.

Depois da abertura com talentos locais (o agradável set da jovem Jéssica Pina e os ritmos de Sara Tavares), David Byrne surge no palco sozinho, sentado a bordo de um teclado e a ostentar um cérebro na mão esquerda. Canta uma letra fiel ao seu velho espírito idiossincrático no tratamento de “objetos” mundanos: “Here is many sounds for your brain to comprehend/ Here the sound it´s organized into things that make some sense”.

A abertura atmosférica com “Here”, faixa que encerra “American Utopia”, dá lugar à uma esfuziante versão de “Lazy”, que em tudo contraria o nome da música. Para manter a emoção no auge, como mandam as regras de que um concerto inesquecível tem de ter uma grande abertura e um encerramento de igual quilate, Byrne encadeia a estupenda “I Zimbra”, clássico do tempo em que ele tocava “numa banda chamada Talking Heads” e que abria o mítico “Fear of Music”, de 1979, com a sempre energética “Slippery People”.

Por esta altura muita gente poderia estar a perguntar-se de onde vinha aquela sonoridade toda: num palco praticamente sem ornamentos e sem bateria, os músicos circulavam com os seus instrumentos. Certamente que ele não andaria por aí a fazer playback mas, mais tarde, antes de apresentar os membros da banda, achou por bem esclarecer, lembrando um momento anedótico ocorrido num concerto em San Antonio, que “sim, esses fantásticos músicos estão a tocar”.

E se para eles não havia sossego e a sua movimentação em palco era contínua, o espetáculo misturava ainda ecos teatrais, algumas surpresas com a iluminação em combinações milimétricas com as performances coreográficas e insinuações futuristas na trilha visual dos Kraftwerk. Longe de se resignar ao que poderia restringir-se a um espetáculo com a apresentação das canções do novo álbum (além da abertura há “I Dance Like This”, “Everything Is a Miracle”) e sons do passado, Byrne trabalhou sobre um conceito.

Este também inclui política: a certa altura recomenda ao público que nunca deixe de votar, uma forma “mínima que seja” para tentar influir nas alterações que o Ocidente atravessa. Ou quando recupera a louca trajetória de Imelda Marcos, carregada de excentricidades e famosa pelos 2000 pares de sapato que teria quando o seu marido, o ditador Ferdinando Marcos, foi deposto em 1986.

“Here Lies Love” foi um projeto desenvolvido há quatro anos com Fatboy Slim, onde se juntava a ideia de um musical (ela era grande aficionada de música dsico) com letras quase inteiramente compostas com citações da própria. O DJ britânico, aliás, seria outra vez evocado quando Byrne e os seus músicos transformam o palco numa grande festa (as percussões, muito a cargo de músicos brasileiros, já faziam lembrar o grupo afro Olodum) com a execução de “Toe-Jam”, versão do Brighton Port Authority – trabalho dele de 2009.

O final tratou de “mandar a casa abaixo” com “Burning Down the House”, que se seguiu a “Blind” e antecedeu a primeira saída de cena do grupo antes de um regresso para “The Great Curve” – para a qual não se esperaria outra coisa que não a apoteose.

Ainda há tempo para mais um “comeback” – e novamente tonalidades políticas: “Hell You Talmbout”, canção editada por Janelle Monáe em 2015 como uma forma veemente de protesto a propósito da violência policial contra os negros nos Estados Unidos, alerta para um “save the name” onde cabe declarar o nome de alguém assassinado pelas “forças da ordem”. As percussões tomam conta enquanto muitos nomes são citados – uma iniciativa que no original até incluía uma versão instrumental para que cada pessoa pudesse compor a sua lista. David Byrne pode andar por aí a espalhar boas-novas mas está longe de um idealismo ingénuo: este norte-americano não pretende esquecer o mundo onde vive.

Texto: Roni Nunes/ Fotos: Rodrigo Gatinho