“O livro é um bocado isso… Queria ter um livro que me falasse da história de mulheres como a minha mãe, as minhas tias, a minha avó. Estas histórias são muitas vezes contadas a partir de quem tem poder: pessoas que tiveram um nível de educação elevado, que vêm de famílias abastadas, que têm percursos de alguma forma marcantes. Eu queria ver a mudança do país através de mulheres comuns, que o leitor pudesse ler o livro e identificar-se”, explica a autora, em entrevista à Lusa.

Ana Cristina Pereira tem “este vício de ir um bocadinho à procura das vozes que estão em falta”, por isso não é de estranhar que dois projetos diferentes tenham desembocado neste livro.

Tudo começou quando foi desafiada pelo Fronteiras XXI para escrever um artigo sobre as mulheres em Portugal e decidiu fazer um “trabalho de olhar para dentro de casa”, para a avó, a sua mãe, para a irmã, para si própria e para a sobrinha.

Paralelamente, o trabalho no jornal Público acabou por levá-la de volta ao arquipélago de onde é natural, para uma série de reportagens sobre os 600 anos da chegada dos navegadores portugueses às ilhas da Madeira e Porto Santo.

Foi aí que se manifestou o ‘vício’, já que, “sem dar muito por isso, estava a ouvir mais o lado das mulheres”, uma perspetiva que, “na história daqueles 600 anos, estava bastante ofuscada”.

“Foi-me fazendo sentido usar a Madeira como microcosmos, porque a Madeira é suficientemente pequena para dar uma sensação de conjunto, para nos permitir ler o território na sua totalidade, e é suficientemente grande para ter diversidade, para permitir apurar distintos fatores e distintos planos”, conta.

A decisão não aconteceu sem ponderar os “obstáculos”, porque “há uma sensação de que seria um livro de nicho, que só interessa às pessoas daquele sítio, e não é. A ideia é ler o país”.

Os caminhos que mostram a história de um arquipélago e das suas mulheres são feitos de “imensos paralelos” com a realidade nacional, como o exemplo das histórias de emigração, em que “o marido ia à frente e a mulher a seguir, que é um fenómeno que está reconhecido no país todo”, o que mudava eram os destinos.

“A partir do 25 de Abril [de 1974], as mulheres começam a ir sozinhas, já não precisam dessa desculpa de ir com o pai ou com o marido. Mas essas primeiras têm de ser corajosas, porque estão a enfrentar uma série de resistências, nas suas famílias e nas suas aldeias, para poderem fazer isso”.

Além da viagem no espaço geográfico e social, há um percurso pelo tempo, que espelha uma “questão geracional”.

“Todas estas mulheres enfrentam desafios. As mulheres mais velhas, que têm 80 anos, ou 70 e muitos, enfrentam dificuldades de educação, ao trabalho fora de casa, ao emprego, têm de lutar por esses direitos. As gerações mais novas têm outros dilemas: a precariedade, a dificuldade de sair de casa dos pais, o assédio na rua”, detalha.

E mostra o muito que se caminhou nesse tempo.

“Quando pensamos no que era a condição da mulher no início do povoamento, 600 anos antes, não era assim tão diferente do que era em 1820. A grande transformação é a dos séculos XX e XXI. Até aí, é tudo muito estanque, em termos de conquista de direitos”.

Há também uma “’invisibilização’ do contributo de todo o trabalho reprodutivo e uma narrativa construída em torno da participação da mulher no mercado de trabalho, que é falsa”.

“Cresci a ouvir dizer que a mãe não trabalhava. A minha mãe trabalhava desde que se levantava até que ia dormir, trabalhava imenso. E não trabalhava só em casa, como no trabalho agrícola. Nada disto é reconhecido como trabalho”.

Antes da industrialização, “as pessoas viviam em famílias que eram pequenas unidades de produção. Havia a vaca, as mulheres faziam o queijo, os homens iam plantar e faziam, com as mulheres, os regos, as crianças tiravam as ervas ou apanhavam as batatas… As tarefas estavam todas divididas, mas todos trabalhavam”.

Mesmo depois disso, as mulheres ocupavam lugares nas fábricas, ainda que tivessem de combater a “ideia de que não é correto as mulheres saírem, mas isso é uma coisa muito recente, e de famílias com algum dinheiro, porque as mulheres pobres sempre trabalharam, nas fábricas, na agricultura, no comércio, nos mercados”.

“Como é que permitimos que esta mentira subsista? E como é que saímos desta mentira? É uma mentira tão repetida que passa por verdade. Está tão enraizada que é propaganda misógina. É pura propaganda”, reitera.

Atualmente, há ainda questões por resolver, “como a disparidade salarial, que tem muitos fatores, mas um dos fatores base ainda é esta ideia de que as mulheres são mais responsáveis pela casa e pelos filhos e os homens são menos; então os homens podem aceitar mais desafios, podem aceitar mais facilmente ser chefes, por exemplo”.

Nestas histórias de mulheres, vão surgindo também alguns “homens que são aliados”, até porque esta relação, que prejudica as mulheres no trabalho, “também puxa os homens para baixo nas questões do afeto, porque não lhes é reconhecido, da mesma forma que às mulheres, o direito de passar tempo com os filhos, ou a cuidar dos pais”.

Ao longo de 25 capítulos, as histórias destas mulheres vão traçando um retrato sociológico de um arquipélago que é também o de um país.

Mostram vitórias que estão ligadas a “características individuais importantíssimas”, mas que, algumas delas, beneficiaram de um “contexto social que também é propício”.

“Mulheres da minha ilha, mulheres do meu país - Igualdades que Abril abriu”, editado pela Livraria Bertrand, é apresentado esta sexta-feira, às 18h30, na Fnac do Norteshopping, em Matosinhos.