“Não se espera que uma travesti possa desenvolver técnicas, que possa criar teoria e conceito como faço, porque não se espera intelectualidade dos nossos corpos. A ‘cisgeneridade’ já nos olha com superioridade moral, social”, comenta.

A atriz e dramaturga apresenta, desde sexta-feira, na versão online do Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica (FITEI), a estreia nacional de “Manifesto Antropofágico”, um monólogo a partir do próprio corpo para questionar o lugar do corpo trans e travesti, o “olhar cisgénero” e a manutenção de um sistema transfóbico.

Trabalha em teatro desde 1996, mas tem desenvolvido um estudo como antropóloga, ou ‘transpóloga’, como prefere descrever, sobre pessoas trans e travesti no Brasil, tendo fundado o Movimento Nacional de Artistas Trans, e trabalhado junto de travestis e transexuais em situação de prostituição compulsória.

O próprio uso e apropriação de palavras, de ‘transpóloga’ a ‘travaturgia’, ‘traviarcado’, ‘transcestralidade’, ‘travesteca’, entre outras, vem da necessidade de “trapacear a língua”, seguindo a linha de Roland Barthes ou da personagem principal de “Grande Sertão: Veredas”, de João Guimarães Rosa, que diz que, para “muita coisa importante, falta nome”.

“Uma transpóloga é uma travesti ou pessoa trans que estuda a identidade, a vivência e a corporeidade trans/travesti. Se não existia, agora tem, sou eu. Isso foi importante marcar”, disse à Lusa.

A necessidade de enquadrar a vivência trans, de “humanizar” os corpos e as vidas, passa também pelo pensamento, devido às expectativas criadas com a “construção social e imagética do corpo transgénero, a sexualização, os estereótipos, a transfobia estrutural, a criminalização, o encarceramento em massa, a violência, a patologização que permeia esses corpos”, como se lê na sinopse de “Manifesto Transpofágico”.

Manifesto Antropofágico

“As pessoas partem do princípio de que eu sou burra, de que não sei do que falo, que não tenho a experiência, que não sei o que é proscénio, teatro de sombra, Brecht, Stanislavski, não esperam do meu corpo esse tipo de pensamento”, acrescenta.

Também em Portugal, os planos gorados pela pandemia de COVID-19 impediram-na de trazer o espetáculo em 2020 ao FITEI e voltar, como planeado, em 2021, para escrever e dirigir uma peça para uma atriz trans portuguesa.

De resto, todo o seu trabalho artístico passa pela missão de “reconstruir o imaginário do senso comum do que é ser uma travesti”, até porque acredita na arte como tendo “o poder de transformar”.

“É por isso que sou atriz, porque quero mudar o mundo. (...) O teatro é a arte da repetição. Estou há 25 anos de forma continuada no teatro, consegui exercitar e aprimorar técnicas, profissionalizar-me. Nós, artistas trans e travestis, não temos esses espaços para ensaiar, produzir, criar, porque não é permitido que fiquemos na arte. Então isso dificulta, inclusive, a nossa qualidade artística, do que produzimos”, critica.

Além do teatro, vai lançar em breve “um livro sobre arte e representatividade, focado na questão trans”, em que levanta “os estereótipos, arquétipos, narrativas viciadas, em cima dos corpos trans na arte”.

“Nomeio essas narrativas, a da estética, do masculino, do exagero, a narrativa sexual, criminal, patológica, moral, enfim. Nomeio a transfobia recreativa, que usamos no humor, para reproduzir transfobias, viram piadinhas. É um estudo que visa reconstruir esse imagético, alargar e ampliar o entendimento, [para] entender que a transgeneridade é tão natural como a cisgeneridade”, explica.

Sobre a forma como a própria imagem é difusa, o que prejudica o que comunica, pela construção social vigente, a própria noção de vitimização, voz e representação surge.

“Nós somos vítimas. A Gisberta foi vítima. [Eu] não queria ser vítima, não mesmo. Não é uma Olimpíada de opressão, fui cá colocada e estou ganhando sem querer e sem esforço. Cerca de 90% das travesti são expulsas de casa no Brasil entre os 12 e 14 anos. Eu fui. Cerca de 90% das travestis estão na prostituição compulsória. Eu passei por isso. A segunda causa de morte das pessoas trans no Brasil é o suicídio. Nós dizemos ‘suicidados’”, comenta.

Olhando para a pandemia, acrescenta, vê-a como um momento em que “as pessoas entenderam o isolamento social e familiar”, algo que “as pessoas trans vivem” desde sempre, do confinamento doméstico, “para evitar ser agredida”, à perpetuação de situações de violência e saúde mental debilitada.

“A arte é o mais democrático que eu conheço no mundo. Pena que os artistas cisgénero não saibam disso. O que eu procuro é uma democracia cénica. Esse corpo neutro, no teatro, não existe. Só existe para o homem branco cisgénero sem deficiência corpo magro e publicamente heterossexual”, afirma.

A “desmarcação dos corpos” de todos os tipos, não apenas trans, permitiria “naturalizar o espaço” do teatro e da arte, a partir de quando se poderia falar “de liberdade artística”. “Porque ela não chega ao meu corpo”, diz.

Com ironia, deixa ainda a pergunta sobre porque é que, “com tanta personagem cisgénero na dramaturgia mundial, insistem em ficar com os pequenos papéis trans”, além da própria ‘guetização’ de atrizes apenas nesse tipo de personagens.

“Acham que estamos a censurar artistas cisgénero porque não podem interpretar personagens trans. Para haver censura, é preciso haver relação de poder, e o poder não está nas pessoas trans”, acrescenta.

Nascida em 1981, em Santos, São Paulo, Renata Carvalho cumpre, em 2021, 25 anos de carreira artística, tendo fundado o Coletivo T, primeiro coletivo artístico integralmente formado por artistas transgénero no Brasil.

Tem trabalhado no teatro e no cinema, além da antropologia, e assinado vários documentos, como a criação do Manifesto Representatividade Trans, além de peças como “Dentro de mim mora outra” e o filme “Corpo sua autobiografia” (2020).

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