Em declarações à Lusa, Luís Miguel Cintra realçou o trabalho em equipa com o maestro João Paulo Santos, com quem trabalhou em outras produções operáticas.

“O que o Britten aqui faz é uma coisa que fazemos no teatro, que é a procura da desconstrução da própria fábula ou história que se está a contar, para se fazer a análise crítica ou de reflexão sobre o que essa história permite ou á qual conduz”, disse Cintra.

A morte de Lucretia, que se suicidou depois de violada por Tarquinius, filho do governador de Roma, levou o seu marido, Collatinus, a incitar o povo à revolta contra a monarquia etrusca, dando lugar à ‘res publica’. A história encontra-se narrada nas Crónicas de Tito Lívio, nas quais se inspirou William Shakespeare para escrever o poema “The Rape of Lucrece” (1594).

Além do poema de Shakespeare, o libreto de Ronald Duncan (1914-1982) segue de perto a versão inglesa da peça “Le Viol de Lucrèce”, do francês André Obey (1892-1975).

Esta ópera foi durante anos referida como “O Rapto de Lucrécia”, um eufemismo para evitar o termo escolhido por Britten, “A Violação de Lucrécia”, o que para o encenador “não faz sentido algum, pois ela não foi raptada e também não foi violada”.

“É como se a ópera contasse que a violação de Lucrécia não foi uma violação, ou por antes, quem se violou foi ela a si própria. Não há nenhum momento em que a música sugira ou o texto cantado se refira a uma violência ou que ela tenha sido forçada. Ela entrega-se. Ela começa por proibir-se entregar-se, mas o que nós assistimos na ópera é resistir, mas e ceder finalmente, e ter imenso prazer ao ceder e é sobre essa reviravolta que é considerada pela própria Lucrécia como pecaminosa, como vergonhosa, que se desenrola o resto da história, em que a Lucrécia se mata a si própria”, argumentou.

“A Lucrécia condena-se a si própria, quando o próprio marido a perdoa, aliás, ele diz-lhe, ‘o homem tudo pode perdoar e tudo pode fazer renascer. Aquilo que tu viveste pode ser perdoado. Não há crime nisso, se é crime, uma parte do nosso ser ligar o amor a uma sensualidade, de uma determinada natureza’. No fundo está a dizer uma coisa moderníssima que é cada amor tem a sua própria liberdade e a sua própria consistência”, defendeu Cintra.

O encenador faz uma ponte para a política, afirmando que “metaforicamente, em termos políticos, seria a mesma coisa, pois muitas vezes o que às vezes leva a conflitos são coisas que, aparentemente, são banalidades, quando o que está em jogo e gere os conflitos são as questões profundas que não estão á vista”.

No entender de Luís Miguel Cintra, “há subjacente a toda a obra [de Britten] uma manifestação afirmativa do desejo de participar e de introduzir uma nova sensibilidade e de uma nova maneira de viver, e de uma política, e de um apelo ao público nesse sentido, que é a razão de ser de toda a ópera”.

O encenador salientou ainda o facto de a estreia desta ópera de Benjamin Britten (1913-1976), em julho de 1946, ter coincidido com a fundação da companhia inglesa de ópera English Opera Group, tendo “funcionado o espetáculo como uma manifesto”, questão que o encenador enfatizou comparando com a atualidade em que “a função do teatro em relação à sociedade em que está inserido está completamente neutralizada”.

“Atualmente, tudo é possível e nada tem importância, é como se a arte fosse um passatempo puro e simples, em vez de ser uma coisa que tem uma função na vida das pessoas”, e Britten e esse grupo “pensavam muito nisso”.

Uma das justificações avançadas por Cintra sobre esta questão é a existência de “duas personagens muito importantes na ópera, que são o coro masculino e o coro feminino, que são duas pessoas e não um conjunto de vozes, mas de ser um ponto de vista crítico e narrativo sobre a própria obra e que se tornam nos verdadeiros protagonistas deste espetáculo”.

Britten, defendeu Cintra, escreveu o papel do coro masculino propositadamente para o seu amigo tenor Peter Pears (1910-1986) “e isso sente-se na ópera, porque há uma espécie de envolvimento da personalidade dos cantores que estrearam a ópera e os que se seguiram têm de referir-se a isso, de personalidades individuais que estão a falar sobre um assunto, estão a tomar um partido”.

Na produção do TNSC o papel do coro é desempenhado por Marco Alves dos Santos, a meio-soprano Dora Rodrigues é o coro feminino, Lucretia é a soprano Maria Luísa de Freitas, Collatinus é o tenor Luís Rodrigues, e o restante elenco é composto por Christian Luján (Junius), André Baleiro (Tarquinius), Ana Ferro (Bianca) e Joana Seara (Lucia).

Depois de Lisboa, esta produção sobe à cena em janeiro, nos dias 5 e 7, no Teatro Nacional S. João, no Porto.