Já passaram quase sessenta anos desde o desaparecimento de Carmen Miranda, mas o seu fantasma ainda anda à solta. Pelo menos, foi essa a sensação que tivemos, sábado à noite, no anfiteatro ao ar livre da Fundação Gulbenkian, em Lisboa. A artista luso-brasileira da primeira metade do século XX reencarnou na forma de Real Combo Lisbonense. O ar abafado e as nuvens carregadas foram um bom prenúncio para os ritmos tropicais.

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Ana Brandão, Joana Campelo e Margarida Campelo fizeram bem os trabalhos de casa e arrancaram uma representação quase perfeita de Carmen Miranda. Desde a colocação da voz aos adereços estrambólicos que carregavam na cabeça, passando pelo atrevimento dos movimentos corporais, as três artistas conseguiriam enganar até os mais atentos. “Tic-Tac do meu coração” foi um dos primeiros temas revisitados. Com uma orquestra bastante composta, o Real Combo Lisbonense recorreu a tudo o que fizesse barulho para transmitir a alegria que é apanágio do reportório de Carmen Miranda.

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O público não estava, nem psicológica nem fisicamente, preparado para aquele verdadeiro pagode. O bichinho da dança começava a alastrar-se, mas não o suficiente para vencer o conforto dos bancos almofadados do anfiteatro. Num estilo muito idêntico ao teatro de revista, o espetáculo foi enriquecido pelas interpretações dramatizadas de cada um dos temas retirados do baú. Enquanto isso, as folhas que continham as letras e os acordes das músicas eram, humildemente, presas por molas da roupa.

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O samba, o baião, a marcha e o aroma burlesco coadunaram-se com o junho lisboeta, cheio de vida e festa. Do palco, começavam os apelos: «Então, ninguém levanta o rabinho da almofada?». A timidez tardava em desaparecer. “Tico Tico no Fubá” e “Salada Mista” deram o primeiro empurrão mais brusco. Muito por culpa de Ana Brandão e do seu bailado sobre saltos altos, a plateia foi sendo contagiada. A libertação das articulações e dos músculos só foi totalmente consumada já perto do final, principalmente, com “Sai da toca, Brasil” e “Boneca de Piche”. A partir daqui, poucos resistiram a uma boa sambada e já não deu para ficar sentado. A pista de dança abriu-se mesmo ali, em frente ao palco.

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Para a festa ficar completa só faltaram mesmo os couratos e o pão, porque até vinho tinto houve. O encore serviu para prestar a homenagem final a Carmen Miranda. Primeiro, ouvimos “The Soul of Carmen Miranda”, de John Cale e Brian Eno. Para fechar da melhor maneira, o Real Combo Lisbonense deu-nos a chupeta que precisávamos para não chorar, com o célebre “Mamãe eu quero”. Até o Cristo Rei sambou.

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Fotografias por Débora Lino.