No Reverence, a festa dura até às tantas. Que o diga Óscar Silva, mais conhecido por JIBÓIA, que fechou o festival às 8 da manhã de domingo, numa altura em que apenas os melómanos de boa resistência física se mantiveram de pé a dançar ao som dos ritmos hipnóticos.
O evento, a fazer a sua estreia, correu muito bem e deu provas de que o underground português está de excelente saúde. O cartaz apresentou uma variedade notável atendendo à necessidade de manter uma certa coerência, não obstante o facto de ser difícil de acompanhar tantas bandas e de algumas delas terem sido afetadas por condições de som deficitárias.
Realizado na localidade de Valada (que, felizmente, foi poupada pela chuva que se previa), o recinto apresentou decorações com gosto, bem enquadradas na bela paisagem natural no Ribatejo. Mas não foi só de sentido estético que se fez o Reverence, já que teve uma boa organização e preços acessíveis às carteiras. O palco principal, de dimensões assináveis e acompanhado de dois ecrãs gigantes, foi colocado num campo de futebol com muito espaço, sendo que a organização aqui é merecedora dos três pontos (prometo que não há mais piadas futebolísticas). Contudo, denotaram-se também algumas falhas, nomeadamente o perigo que é ter uma zona de campismo sem iluminação (num local onde há tocas de coelhos) e a carência de uma caixa multibanco no recinto, já que a localidade só tinha um ATM, que ficou rapidamente sem dinheiro. São problemas que facilmente serão resolvidos numa próxima edição, que esperemos que ocorra.
A calmaria antes da tempestade
O tiro de partida para esta maratona musical foi dado pelos Cave Story. O grupo, natural das Caldas da Rainha, deu um bom concerto de rock lo-fi e cheio de personalidade para as poucas dezenas que pararam em frente ao palco Rio, enquanto outros se encaminhavam para explorar o recinto. No Sabotage, no outro extremo do (felizmente diminuto) recinto, os Black Leather não deixariam grande memória, muito por culpa do som embrulhado que, aliás, viria a flagelar este palco nas atuações vindouras.
Tentar descrever um concerto de Putas Bêbedas é complicado. O conjunto, a tocar no Sabotage, é dono de um punk cáustico e propositadamente desgovernado que dificilmente pode ser categorizado sob uma lente crítica: o melhor elogio que lhes podemos fazer é que são ideais para ecoar nas celas de Guantánamo. Já os Kilimanjaro mostraram estar perfeitamente afinados, granjeando de um bom público no Sabotage para ouvir os malhões do álbum Hook. O power trio barcelense serviu-se do seu proverbial gancho para arrancar um pedaço do lombo da vaca dos riffs, servindo doses suculentas que resultam ainda melhor ao vivo.
No Rio, os The Asteroid #4 quase estiveram para não tocar, já que três dos seus elementos foram apanhados a conduzir sob a influência do álcool em Toronto e acabaram detidos. O festival ganhou com a sua vinda, num concerto que manteve a toada psicadélica de balanço mais acessível e solarengo, apesar de não ser nada de novo.
O que seguiria no Sabotage seria uma viragem de 180 graus, já que os longos cabelos, as Flying-v e o pé em cima da munição de palco enquanto faziam headbanging facilmente denunciaram os Bombus com uma banda de metal nórdica. O seu heavy metal só não destoou no cartaz devido às doses generosas de distorção que o enlamearam, mas o público aderiu.
Noutra mudança abrupta, James Toth, mais conhecido por Wooden Wand, encontrava-se no Rio, apenas acompanhado de guitarra, fosse eléctrica ou acústica, a cantar (contar?) histórias. O seu folk com toques psicadélicos foi um pedacinho agradável de americana em faixas como “Winter in Kentucky” ou “Days this Long”.
Não foi de sensibilidades melódicas que se fez a prestação dos Sunflare. Os três lisboetas apresentaram o seu rock instrumental de pendor experimental, onde as mudanças de tempo foram uma constante e a guitarra em persistentes devaneios. O concerto, que por si requeria uma exigente capacidade de atenção, sofreu ainda mais com o som pouco claro, tornando-se pouco memorável.
Com os Sleepy Sun, Valada caiu num torpor agradável, aquele que se sente depois do almoço, em mais uma dose de rock psicadélico de voz inundada em efeitos e solos brilhantes, como se raios de sol se tratassem. Apesar de alguma mesmice, os Sleepy Sun conquistaram o público do Rio e tiveram na harmónica do vocalista Bret Constantino uma das armas para o fazer.
No Sabotage, os Cave davam uma lição de como tocar quase interruptamente sem nunca maçar, num krautrock que variou entre os grooves sexy, os crescendos que teimam em não rebentar e as explosões de energia que finalmente surgem.
Apesar da expectativa, a única coisa interessante no concerto dos Ringo Deathstarr foi o seu nome. O seu rock alternativo a resvalar para o shoegaze e a dream pop não teve argumentos para manter o interesse neles.
A fechar os concertos da tarde, os Woods mostraram como 20 minutos podem fazer toda a diferença. Quem chegasse no início do concerto poderia pensar que se tratavam de trovadores de folk rock agradável e inócuo, mas quem se deparasse a banda numa fase mais avançada do concerto encontrá-la-ia profundamente embrenhada em jams expansivas onde a reverberação, o fuzz e o wahwah foram reis. Bem, os Woods são as duas coisas e a conjugação foi interessante qb.
Um crescendo até ao fim do mundo
Os Wytches estrearam o palco principal quando o dia já ia nos últimos suspiros. Arriscando uma comparação disparatada, o trio inglês faz lembrar os Nirvana, se estes tivessem crescido a fazer surf na costa de Inglaterra, já que os petizes britânicos tanto tanto vão buscar inspiração à fase mais punk do grupo de Seattle como às linhas de baixo do surf rock. “Digsaw”, “Gravedweller” e “Burn Out the Bruise” mostraram quão mais intensos os Wytches se tornam ao vivo, fazendo parecer parco o trabalho no álbum “Annabel Dream Reader”. “Crying Clown” fechou a prestação, iniciando-se num ritmo lento e confessional para explodir num riffalhaço.
Seguiram-se os Swervedriver, conjunto inglês que fez parte do movimento shoegaze nos anos 1990, agora reunido para o gáudio dos seus fãs devotos. Não se percebe se este retorno foi por vontade própria ou para responder aos pedidos dos “Swervies”, a verdade é que eles pareceram totalmente desinteressados no que estavam a fazer e esse sentimento estendeu-se para o público. Apesar de tecnicamente exemplares, os Swervedriver pareceram deixar a alma em Inglaterra e nem boas canções como “The Birds”, “Last Train to Satansville” ou “Duel” serviram para resgatar o concerto da letargia.
Decididos a resgatar o público da monotonia, os Red Fang fizeram aquilo que melhor sabem, lançar boas canções de stoner metal de pendor orelhudo mas honesto. Apesar do mais recente álbum, Whales & Leeches, não ter o mesmo poderio dos LPs anteriores, os Red Fang parecem atravessar um estado de graça em Portugal (é a 4ª vez que cá vêm em dois anos). A banda de Portland começou com “Dirt Wizard” e só parou naquele que se tornou o seu live staple, a sempre engraçada “Prehistoric Dog”. Pelo meio, a atuação contou com as mais recentes “No Hope” e “Blood Like Cream” (com um daqueles refrões criados para serem cantados ao vivo) assim como o ritmo maníaco de “Sharks”, o balanço de “Wires” e a marcha imparável de “Malverde”, possuidora duma introdução arrepiante vinda das cordas de David Sullivan e Maurice Bryan Giles.
Os Graveyard foram considerados como um dos principais motivos para ir dar um pulinho a Valada (e com razão), se bem que o concerto que deram não atingiu todo o potencial projetado. O problema, novamente, residiu no departamento sónico, já que durante parte do tempo, a sua prestação foi anestesiada com um som demasiado macio e baixo, especialmente na bateria, para a natureza rockeira e indomável destes suecos. Por esse motivo, o primeiro terço, com “Blue Soul”, “Hisingen Blues” e “Seven Seven”, foi um passo em falso.
Não obstante, um concerto de Graveyard nunca é mau, tendo o conjunto prendado os presentes com malhas como “Ain’t Fit to Live Here” e “Goliath”. Contudo, devido a alguma brandura indesejável que permaneceu na equalização, as músicas contemplativas, mais próximas do blues, acabaram por ser favorecidas, estando a fatalista “Slow Motion Countdown” e tortuosa “Uncomfortably Numb” em disputa para melhor momento do concerto, repletas de arranjos de guitarra deliciosos. Já “The Siren”, uma das melhores canções escritas por Joakim Nilsson e companhia, pecou por alguma incapacidade que o guitarrista e vocalista revelou em manter as notas no refrão, talvez demonstrando algum cansaço. Os Graveyard acabaram com “Evil Ways” e saíram do palco sem direito a encore nem despedidas.
A falta de garra que se notou no som durante o concerto dos Graveyard devia estar a ser guardada para a brutalidade monolítica que os Electric Wizard proporcionaram. A banda inglesa, cuja última presença em Portugal data de uma vinda ao Milhões de Festa de 2010, foi senhora do palco Reverence, assinando o melhor concerto do dia, possivelmente do festival.
Donos de um portentoso stoner doom, de riff fácil mas incrivelmente eficaz, os Electric Wizard deram início ao ritual de bruxedo com a paquidérmica “Supercoven”, tentando, quiçá, fazer emergir Chthullu das águas do Tejo. Seguiu-se “Satanic Rites of Drugula”, imbuída na mitologia de drogas e adoração profana que acompanha a banda. Às tantas, o guitarrista e vocalista de timbre nasalado Jus Osborn perguntou aos membros do público se estavam “high”, sendo que as nuvens de fumo que brotavam da audiência não deixaram dúvidas.
A lentidão sufocante apenas cessou com “Black Mass”, canto obscuro de cadência mais acelerada. Durante o resto do concerto, foram riffs atrás de riffs que gorgolhavam dos amplificadores, criando uma parede de som distorcido que debastou o tímpano e certamente moveu a massa de água do rio para a outra margem.
“Witchcult Today” e “The Chosen Few” foram hinos panegíricos do clube exclusivo de Satanás, “Return Trip” foi uma viagem infernal de volta ao “Come My Fanatics” e o ritual só terminou com “Funeralopolis”. Saído de “Dopethrone” (cuja faixa-título, infelizmente, foi despachada para o meio do set em versão redux), álbum que atualizou as regras em como fazer música pesada no legado pós-Black Sabbath, este tema é a banda-sonora do apocalipse, começando pelo início lúgubre, passando pelo riff monstruoso que se segue e acabando naquele midtempo destrutivo, evocativo de milhares de ogivas a cair sobre a terra. Daquilo que era o campo de futebol de Valada, apenas restou uma cratera fumegante.
Debaixo dos escombros
O mundo pode ter acabado, mas a noite não. Os Process of Guilt, nata da produção nacional de música pesada, tiveram a difícil tarefa de reunir os moribundos em frente ao Sabotage para mais uma valente dose. O seu doom com laivos industriais e repetição maquinal foi o seguimento perfeito para um público ainda a recuperar do ataque sensorial que tinha recebido. Numa prestação onde “Harvest”, “Empire” e “Faemin” costumam ser os maiores destaques, saudou-se a presença da nova faixa “Liar (Mouvement I)”, gravada para um split com os suíços Rorcal.
No palco Rio, os White Hills davam a estocada final. Se as duas anteriores bandas não fritaram a mioleira aos festivaleiros, este duo (acompanhado de baterista) certamente conseguiu fazê-lo com o seu stoner rock espacial, de experiências aurais e psicadelismo intoxicante, onde a figura da baixista se destacou num negro lustroso.
Na reta final, onde os sentidos já tendiam a falhar, os The Telescopes, outra banda shoegaze saída do final dos anos 1980, tomou se assalto o palco Rio com o apoio dos Sun Flare e Nuno Branco, também conhecido por James Jacket Music. O conjunto foi a antítese dos Swervedriver, mostrando como se pode ser um veterano e reter a agressividade, pontificada pelos berros agonizantes de Stephen Lawrie.
Seguiram-se os Naam, que prometiam mais, mas cuja falta de intensidade foi fatal para um concerto às 4 da manhã e os Black Bombain, ainda com muito público (o que demonstra bem o seu estatuto neste momento), embalaram-nos numa viagem sónica, desta feita até à tenda. Os resistentes ficaram para o rock sem artífices de Miss Lava e para a caldeirada de géneros de que se forma do som dos The Cosmic Dead.
Fotos @Rita Sousa Vieira
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