“Era importante fazer chegar ao público uma outra vida de Eça de Queiroz”. Foi desta forma que a conversa iniciou.

Francisco Manso, realizador de alguns êxitos do cinema português e um dos artesãos do chamado “filme de época” à portuguesa (“O Último Condenado à Morte”, “A Ilha dos Escravos”) recebeu o SAPO Mag nos escritórios da sua produtora em Lisboa e no programa inicial estava o seu projeto "O Nosso Cônsul em Havana", série de produção nacional transmitida na RTP, no ano passado, que chega aos grandes ecrãs em formato de longa-metragem esta quinta-feira (19).

Mas o que estava previsto ser uma entrevista para falar e promover o seu mais recente filme acabou por se tornar numa lição de História sobre o percurso de um dos mais conhecidos autores da língua portuguesa.

“Todos nós conhecemos o Eça por razões literárias. […] Da sua escrita fantástica. Da sua personalidade singular, como então a sua intervenção crítica e social. […] mas poucos conhecem o seu outro lado. O seu lado humanista.”, explica o realizador.

“O Nosso Cônsul em Havana”, que começou por ser um seriado de 13 episódios, remete-nos à ida de Eça de Queiroz (1845-199) em 1873 a Havana, Cuba, nos seus primeiros, mas grandes, passos na sua “carreira diplomática”.

Durante a estadia no tropicalismo ainda sob o domínio da Coroa Espanhola, o escritor “revelou-se um defensor dos direitos humanos, mesmo antes de existirem defensores de direitos humanos e os direitos propriamente ditos.” Na sua causa, estava a libertação de trabalhadores chineses, levados e utilizados como mão-de-obra barata na exploração de açúcar da ilha, condenados a um profundo sistema escravocrata.

VEJA O TRAILER "O NOSSO CÔNSUL EM HAVANA".

Na sua explicação pela jornada de Eça no quadrante americano, Francisco Manso refere a simbologia deste ato numa altura em que o mundo civilizado abolia gradualmente a escravatura.

Portugal, como bem se sabe, foi um dos primeiros países abolicionistas (1761). Mas a questão desta luta não está na escravatura em si, e sim os resquícios que ainda integravam algumas economias.

Todo este tema interessou ao realizador, que sequencialmente conversou com António Torrado, “argumentista da série, juntamente com José Fanha, sobre esta ideia. […) Incidir-se no período em que Eça residiu em Havana, que correspondeu praticamente a dois anos da sua vida.”

Para a construção de "O Nosso Cônsul em Havana", Francisco Manso confessou que o processo de condensação da série passou por diversas “dificuldades criativas […], tendo em consideração que todos os elementos históricos e narrativos foram sendo desenvolvidos aos longo dos episódios e que a extração de um deles levaria à exclusão de outro. Como se o edifício perdesse a sua sustentação.”

Como solução, o enredo da longa-metragem centrou numa menina chinesa tornada numa espécie de "macguffin" do percurso heroico de Eça. Ou seja, um elemento ficcionado que serve para representar a causa do nosso herói.

“É através da história daquela miúda que concentramos a ação que o Eça de Queiroz [aqui interpretado pelo ator Elmano Sancho] teve ali [Havana]”, explicou o realizador.

História lusa no grande ecrã

O Cônsul de Bordéus

"Acho que Portugal é um país que se deveria orgulhar da História que tem. Claro que num país com as centenas de anos que Portugal tem encontramos episódios ora gloriosos, que merecem alguma contentamento e satisfação, ora... menos gloriosos, que provocam um certo repúdio. Mas sobretudo temos que ver as coisas à luz da altura que aconteceram. À luz das épocas. Hoje em dia, evidentemente, não existe ninguém que possa concordar ou aceitar com a escravatura, apesar de ainda existir em alguns sítios.”, explicou o realizador, demonstrando o seu fascínio pelo historial português e a sua insistência em representá-lo na ficção, mesmo, como alguns deles, sob meios limitados.

“A grande dificuldade, que é a primeira de todas, são as poucas verbas disponíveis para fazermos projetos desta natureza”, admitiu, antes de acrescentar que "o passado nunca deve ser branqueado. Devemos falar dele, e quanto mais falamos e quanto melhor o percebemos, melhor entendemos o tempo em que vivemos.”

Francisco Manso recorreu diversas vezes à História para dirigir episódios do dito feito português. Enredos de resistência e de homens que opuseram a regimes em nome da sua humanidade.

Por exemplo, o seu grande êxito “Aristides de Sousa Mendes – O Cônsul de Bordéus”, o gesto do diplomata Aristides de Sousa Mendes (1885-1954), que através da concessão de vistos conseguiu salvar mais de 30 mil  vidas na Segunda Guerra Mundial, incluindo 10 mil judeus, contrariando as ordens do próprio Salazar.

O filme, protagonizado por Vítor Norte, foi visto por mais de 55 mil espectadores em 2012, ajudando a reacender a memória deste mártir que o Estado Novo tentou apagar e o ator sempre revelou interesse em regressar ao papel numa possível sequela.

Questionado sobre o facto, Francisco Manso respondeu: “Tenho um projeto, que por acaso desenvolvi com um dos netos do Aristides Sousa Mendes, sobre o que lhe aconteceu após ter sido obrigado a regressar a Portugal, que foi um castigo por parte de um regime. Esse projeto está escrito e só aguarda a possibilidade de tentar encontrar alguma forma de o concretizar. Considero um projeto importante, até porque tem dados específicos sobre a figura de Aristides.”

De seguida, lança a advertência: “não o vejo a avançar de imediato”.

Outros projetos na agenda de Francisco Manso não saem do registo de época, como o desejo de fazer um filme sobre Humberto Delgado (1906-1965), mesmo sabendo que o realizador Bruno De Almeida já o havia feito com “Operação Outono” em 2012 (o papel do general foi entregue às mãos do americano John Ventimiglia), e ainda um projeto à volta da ocupação japonesa em Timor durante a Segunda Guerra Mundial, baseado num “diário do historiador António Monteiro Cardoso”.

“As tropas nipónicas lançaram-se pelo Pacífico adentro em direção à Austrália e ‘esbarraram’ com Timor. Lá encontraram resistência num pequeno grupo de portugueses, comandos australianos e timorenses que resistiram e abrigaram nas montanhas da ilha. Fizeram frente aos japoneses durante três anos e meio. É uma história incrível de coragem, de dignidade e também de sofrimento, tendo em conta que muitos daqueles portugueses foram capturados e aprisionados nos campos prisionais japoneses, onde grande parte acabou por morrer.” contou-nos o realizador, acrescentando que “é um projeto com possibilidades de avançar e de momento estou a priorizar o seu desenvolvimento.”