"Precisava de escrever algo com substância. Acabei por me levar a sério", diz Damon Albarn a propósito de "Modern Life is Rubbish" (1993), o segundo álbum dos Blur e o primeiro passo para uma das etapas mais emblemáticas do seu percurso: a fase britpop, que teve continuação nos dois álbuns seguintes.

O vocalista e compositor conta que a sua namorada de então, Justine Frischmann (que formaria os Elastica), o encorajou a olhar para a música de outra forma, em particular para o que através dela pretendia retratar e transmitir. E assim as canções dos Blur partiram para um registo mais observacional, cortando nos relatos amorosos e apostando em histórias do quotidiano da classe média com um toque inequivocamente "british": evidente na ironia que começou então a insinuar-se ou nas influências sonoras que percorrem o disco.

Enquanto os Oasis estudavam a discografia dos Beatles com papel químico (já voltaremos a eles), os Blur esgravatavam álbuns de David Bowie ou dos Kinks, abandonando o sabor etéreo de "Leisure" (1991) rumo a uma predileção por ambientes que iam de reminiscências punk ou a uma pop mais elegante.

Em vez de ser considerado uma pedrada no charco, "Modern Life is Rubbish" foi inicialmente recebido com desinteresse. O que viria a abrir caminho para a chamada britpop chegou num contexto em que o grunge despertava especial atenção, cenário confirmado pelos próprios Blur que aterraram nos EUA, para uma digressão de 44 datas, no dia em que "Nevermind", dos Nirvana, foi editado.

Canções refinadas, como o ótimo single "For Tomorrow", não tiveram grande eco em ambos os lados do Atlântico, o que se traduziu em concertos pouco concorridos e num disco visto como fora de tempo - tão fora de tempo que a editora sugeriu que a banda o regravasse com Butch Vig, o produtor de "Nevermind".

Confiantes, apesar de tudo, na sua linguagem, os Blur não cederam, aguardaram, e foram virando o jogo: no final de 1993, parte considerável da crítica acabou por reconhecer os méritos do disco, incluindo-o entre os melhores do ano, e a conquista do grande público não tardaria a chegar.

Quando a fama não pede licença

"O Damon criava personagens porque não queria falar muito dele. Éramos muito auto-conscientes nessa altura. E parecia funcionar, com pequenas vinhetas de pessoas que ele via na rua ou que conhecia", explica Dave Rowntree no booklet da edição de "Parklife" (1994), para muitos o disco de referência dos Blur e certamente um dos mais influentes e bem sucedidos da britpop.

Seguindo os moldes de "Modern Life is Rubbish", o álbum reforçou o olhar sobre a Inglaterra de então, apresentou canções com gente lá dentro e saltitou entre o (des)encanto e o cinismo, a festa e o recolhimento. O single "Girls & Boys", munido de vitaminas disco, tornou-se num clássico instantâneo e no grandes responsável pelo ávido acolhimento de um álbum capaz de testar outros paladares, indo das incursões spoken word da faixa-título à new wave de "Trouble in the Message Centre", esta um dos segredos mais bem guardados da discografia dos Blur.

A fama repentina foi um bálsamo para uma banda cuja viabilidade comercial descia a pique, mas impôs o seu preço. "O estilo de vida do grupo mudou dramaticamente. De repente as nossas famílias passaram a ser perseguidas pelos jornalistas. Antes saíamos de um clube e passávamos pelos paparazzi que esperavam pelas estrelas, mas de repente passaram a estar lá por causa", lembra o baterista.

Boa parte da imprensa britânica não se ficou por aí e foi tentando espicaçar, com alguma pontaria, a concorrência entre os Blur e os Oasis, moldando um duelo de titãs da britpop. A guerrinha ficou-se mais pelas páginas dos tablóides do que pelas relações pessoais dos músicos, o que não impediu que as bandas tornassem 14 de agosto de 1995 numa data peculiar: afinal, marcou a edição dos singles "Country House", dos Blur, e "Roll With It", dos Oasis, o que esteve longe de ser mera coincidência.

"Country House" vendeu mais, com alguma vantagem, e a vitória comercial foi um impulso oportuno para "The Great Escape" (1995), espécie de sequela de "Parklife" - criada quando o grupo ainda promovia esse disco - embora não tão consensual.

Canções como "Charmless Man", "Ernold Same" ou "Dan Abnormal" deram continuidade às personagens de Damon Albarn, diretamente retiradas do dia-a-dia mas aqui desenhadas com um traço mais caricatural. E se é verdade que "The Great Escape" soa por vezes a repetição, não deixa de guardar pérolas como a popular "The Universal", um dos hinos dos Blur, ou outras menos celebradas como a contemplativa "He Thought of Cars" ou a hedonista "Entertain Me".

Mais uma vez, a popularidade teve efeitos ambíguos na rotina do grupo. Apesar de monetariamente compensadora, não deixou incólumes as relacões pessoais do quarteto, sobretudo entre Damon Albarn e Graham Coxon. "Foi muito difícil com o Graham.(...) Foi horrível. Foi uma confusão. A nossa relação tornou-se muito pouco natural e desconfortável. Que posso dizer? Foi ficando pior e pior", salienta Damon Albarn no booklet da reedição do disco. "Olhando para trás, não sei porque fiquei tão incomodado. Foi tudo tão inesperado, a realidade estava tão longe do que eu queria fazer ou ser ou do que cada um de nós queria, na verdade", recorda também Graham Coxon. Essa sensação de incómodo e desconforto acabaria por ser, aliás, parte integrante da dinâmica do grupo a partir daqui, como o comprovariam as gravações dos três últimos discos:

+ E depois do adeus, Blur? (parte III): América, África e um coração partido

@Gonçalo Sá

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