A zona ribeirinha barcelense recebeu de novo o Milhões de Festa -festival que prima pela diversidade de bandas que convida e pelo ambiente tranquilo, quase familiar, que se vive ao longo dos três dias. A edição deste ano viu os palcos aumentados: em vez dos três já tradicionais (o Palco Milhões, Vice e a fabulosa Piscina), nesta versão os músicos repartiram-se também pelo Palco Lovers & Lollypops e pelo Palco SWR.

Ofestival começou na piscina, no início de sexta-feira, ao som dos HILL, de Miguel Azevedo (Plus Ultra e Mosh) e João Guedes (Sizo), numa distorsão progressiva de guitarras e da voz do último. Se alguém adormeceu na relva, o sono foi certamente interrompido pela forte vibração de "I Want You" e "Filhote".

O ritmo acelerado continuou com Black Bombaim, banda da casa, em intermitentes e viscerais riffs, numa perfeita sintonia de "Saturdays and Space Travels" com os que se atiravam ao som deles piscina adentro.

Quarenta minutos depois é a vez de Hayvanlar Alemi. Turcos, psicadélicoseenvolventes. A banda-sonora que remete para sonhos em crescendo. Com o sol a aquecer a relva da piscina, muitos foram os que adormeceram ao som de "Gökte Güller Açiyor".

E porque a festa não é apenas na água, a meio da tarde rumou-se ao palco Lovers & Lollypops, junto ao tranquilo Rio Cávado, para se ouvir os Botswana. É um rock duro o deles. Após a saída de Sofia Magalhães e a entrada de João Brandão, o baixo soa agora mais agressivo. O EP "Attila Atlas" foi desbravado e o pó levantou-se entre os presentes. Os instrumentos voaram pelo ar, os gritos ouviam-se na cidade. "I am Masada", "The Story of Barry" e, a terminar, "Animal" (tema novo)mostraram, uma vez mais, que os Botswana estão cá para ficar.

De volta à piscina, seguem-se os The Glockenwise, com túnicas magrebinas e o seu "Building Waves" a tomarem conta do público molhado. São da casa também e, apesar da tenra idade, sabem mostrar como se vive do e pelo rock. All the girls in there sentiram-se como "Bardamu Girls".

A tarde passou e eis que chegamos ao recinto principal. Os primeiros a pisar o palco Vice foram os Riding Pânico. O dia era de rock intenso. "Lady Cobra" vem prová-lo.São de Lisboa, de muitas outras bandas também, e pela quarta vez consecutiva participam no Milhões, deixando-nosnum ténue e progressivo estado encantatório.

Born a Lion inauguram o Palco Milhões com "Lonely Guy", prova mestra daquilo que são capazes de fazer. Já foram uma das revelações nacionais, agora continuam a manter o estatuto pela energia que transmitem palco fora. De rajada, "Black Pope", "Blackout", "Down by the River", "Psycho" e, já em encore, a retumbante "Holy Trap".

O revivalismo está para começar. Ei-lo aqui em força com os Motornoise no Palco Vice. Ninguém na banda aparenta calma ou ponderação mas é mesmo Frágil quem canta e a sua voz bruta faz levantar os punhos e todos entoam em uníssono "Tiengo la camisa rota. Foi do corpo de um companheiro". Os Motornoise pedem desculpa por não cantarem canções de amor, mas não precisam. O seu lugar está já bem marcado a ferro e fogo no punk nacional.

Numa alternância dicotómica, Aethenor e Zun Zun Egui. Os primeiros detentores de um som pesado, taciturno; os segundos revestidos de um groove contagiante. "Faking Gold & Murder IV" em contraste com "Waterfall". Também da contra-posição de sons vive o Milhões.

Se com Gama Bomb entramos no trash metal irlandês, com os tão aguardados Graveyard recebemos um rock absolutamente clássico e intemporal.O público agita as cabeças sofregamente, tendo o apogeu sido na sequência "Thin Line", "Aint Fit" e "Siren", uma sonoridade mais que épica e pela primeira vez escutada em terras lusas.

Às duas da manhã sobem ao palco Angus Andrew (guitarra e voz), Aaron Hemphill (guitarra, voz e bateria) e Julian Gross (bateria), os nomes grandes da noite. Numa multiplicidade sonora, do indie mais assumido a estados experimentais mais arrojados, os Liars não se ocultam na produção de cada disco. Ao vivo, mostram-se maiores, mais libertos. São,assumidamente, um nome incontornável daquilo a que se chama pós-rock noise alternativo e, desde o ano 2000, que propagam, e bastante bem, um art-dance-punk suave, bem patente na "Plaster Casts of Everything".

O Palco Vice vê, já noite adentro, o regresso de If Lucy Fell, Veados com Fome e Lobster. Que se pode dizer de tanta e tão aclamada energia? Com reputações musicais vastas, qualquer uma destas três bandas sabe bem como incendiar uma plateia.

Regressados depois de dois anos de interregno e protagonizando o último concerto da sua carreira, If Lucy Fell actuam com a garra e desmesura de um adeus que ninguém deseja. Makoto Yagyu incendeia a plateia ávida por ouvi-los de novo e o seu crowdsurfing de microfone em riste completou o que muitos consideraram como o concerto mais noltálgico da noite.

Já os Veados com Fome não conseguiram tamanha adesão do público. Ouviu-se "Nelson", o seu mais emblemático tema, e "Paquito" -ambas repletas de riffs. Note-se queeste trio de Santo Tirso marcou, juntamente com os Lobster, a génese da Lovers & Lollypops, sendo os seus dois primeiros orgulhosos rebentos.

E já que deles se fala, chegam os Lobster. Baterista e guitarrista à frente das grades, à frente do púbico, numa amálgama musical de baquetas,com guitarra colada ao público que se comprime em demasia contra ambos. "Interstellar Moustache" começou e o crowdsurfing foi mais intenso que nunca, tendo o absoluto apogeu ocorrido quando Guilherme Canhão, de guitarra em punho, toca aos ombros da multidão. Os corpos voavam por cima das cabeças que sorriam, naquela que é considerada a banda melhor pós-tudo-e-mais-alguma-coisa nacional porque simplesmente não temem o ruído porque sabem bem que o desassossego está dentro de nós.

Texto: Ana Cancela
Fotografias: Ricardo Almeida