A técnica é conhecida como ‘blackout poetry’ e consiste em mudar um texto já existente, que pode ser um livro, como foi o caso, e rasurar com um lápis ou uma caneta as palavras que não interessam, deixando visíveis as que permitem criar um novo texto, uma poesia, explicou à Lusa Viton Araújo, poeta e diretor criativo, um dos mentores da iniciativa.

A partir do “Projeto de Constituição Política da República Portuguesa” de 1933, que legitimava um regime de caráter autoritário, nasceu este novo livro, azul, cujo título – “Reconstituição Portuguesa” – resulta da rasura do original. É também uma forma de "censurar a censura”, como disse Viton Araújo, com o seu próprio "lápis azul", que a tornou conhecida.

Editado esta semana pela Companhia das Letras, com o subtítulo “Um exercício de liberdade poética”, a obra, que é também em si uma peça artística, vai ser lançada no dia 25 de Abril, às 11h00, no Museu do Aljube, em Lisboa.

“Reconstituir a violência colonialista escondida nas palavras de um documento aparentemente apenas burocrático. Reconstituir a transgressão ao fascismo através da arte. Se, durante o Estado Novo, o lápis azul foi usado por censores para calar a livre expressão, em 2022, oferecemo-lo a brilhantes poetas, escritores e ilustradores contemporâneos para ressignificarem a constituição fascista de 1933 em poemas e ilustrações em louvor da liberdade”, explica a introdução do livro.

A ideia partiu de Viton Araújo e Diego Tórgo, diretor de arte, que trabalham juntos em publicidade e que, ao longo do seu percurso, têm desenvolvido várias ideias juntos.

“Em abril do ano passado tivemos a ideia, que não é publicitária, de homenagem a este país que nos acolheu. Somos dois brasileiros, apesar de já termos cidadania portuguesa, e surgiu. Eu também tenho trabalho poético e já fiz um ‘workshop’ de ‘blackout poetry’, que é essa técnica de rasurar um texto já existente para criar um poema novo. Então, por que não escrever com lápis azul, numa crítica ao que foi a ditadura do Estado Novo e numa ode à liberdade de expressão e à poesia e à arte no geral?”, contou Viton Araújo à agência Lusa.

A contracapa é ilustrada com um conjunto de cravos azuis, sobre um fundo azul mais escuro e, nas páginas que compõem o trabalho artístico, é possível encontrar ilustrações tão diversas como retratos de mulheres, negros, trabalhadores e de Salgueiro Maia, mas também imagens alusivas à paz, ao sofrimento, à justiça, à morte, à guerra, à revolução, à liberdade.

Em cada página há sempre um poeta e um ilustrador, ou designer, ou artista plástico, e “a arte de censurar a censura será uma das definições possíveis para este livro”, que levou artistas portugueses, brasileiros e de países africanos de língua portuguesa a reviver e a “reinventar o trauma da violência colonialista”.

Viton Araújo explica o processo criativo: “Nós dividimos as páginas um bocado à sorte para ninguém ser privilegiado. Os poetas receberam primeiro e tiveram de se deparar com essas páginas, para então usar o lápis – às vezes lápis digital, às vezes lápis físico –, usar esse lápis azul, e riscar, para depois os ilustradores receberem esses poemas e poderem fazer o ‘blackout’ na página como um todo, criando as ilustrações já inspirados pela poesia”.

“A cada página, um corpo, um trauma, uma voz diferente. Uma colcha de retalhos composta por gritos, ora de indignação, ora de dor, mas sempre de liberdade. Se celebrar a Revolução de Abril sempre foi importante, em tempos de ameaça à democracia por parte da extrema-direita torna-se fundamental”, escrevem os autores do projeto na introdução.

Do capítulo I da Constituição de 1933, nasceu pelo lápis azul do próprio Viton Araújo o poema “Abril/Constitui/Garantias fundamentais/da Nação Portuguesa". Na ilustração, de António Jorge Gonçalves, uma mesa, um copo, duas malgas de sopa e uma mão que pega numa delas.

“Ninguém será obrigado/a responder/por/Liberdade de expressão/do pensamento/e o género/é/exclusivo do corpo” e “reza/à mulher/pela diversidade/das coisas./respeita os direitos/dos indivíduos/faz prevalecer a harmonia/e zela/pela existência humana” são dois dos poemas desvendados por Li Alves, artista de ‘spoken-word’ e impulsionadora do movimento Poesia Slam em Portugal, ilustrados por Maikon Nery, com um cravo num cano de uma espingarda, e por Eduardo Tavares, com uma mulher de mão pousada sobre o ventre, respetivamente.

“Ser delinquente/é permitido/em cargos públicos/e profissões privadas./Os cidadãos são gados/sem harmonia/com a Natureza”, afirma o angolano Lucerna do Moco.

André Tecedeiro compõe: “Aproveitamento de/carvões minerais/para produção de/numerosos portugueses”.

Por sua vez, Rita Taborda Duarte expõe: “Assume o dia expira/inspira/fielmente/a independência Portuguesa/só a eleição/pode escolher/a Assembleia”.

Entre os 58 poemas que compõem o livro, recorda ainda Viton Araújo: “A vida/mercadoria/administrativa/do império colonial português”.

Nestes casos, DeBrito e Fabian Gloeden são ilustradores.

A escolha dos poetas foi feita por Viton Araújo, a partir daqueles que conhece pessoalmente ou de pessoas que admira, enquanto a Diego Tórgo coube convidar os ilustradores, seus conhecidos, no âmbito do trabalho que desenvolve.

“Tivemos o cuidado de ter uma diversidade: há poetas de género homem e mulher, há pessoas trans, há pessoas de todas as idades (…). Tivemos o cuidado de escolher não só pessoas que conhecemos e admiramos, mas também de diversidade, já que no Estado Novo as mulheres poderiam fazer pouco mais do que estar em casa, os direitos dos homossexuais também não existiam. Então aqui temos uma diversidade muito grande de pessoas e vozes para que possamos ter um manifesto que seja justo com a diversidade que há hoje em dia”, disse à Lusa.

Segundo o poeta brasileiro, “a recetividade ao projeto foi muito boa” e acolhida na hora, pois todos consideraram a “ideia incrível” e reconhecem a importância de “ressaltar Abril e a liberdade de expressão”.

O único entrave que se colocou de início foi o facto de alguns não estarem tão familiarizados com a técnica do ‘blackout poetry’ e “bloquearem” ao olhar para a página, afirmando que não encontravam ali nada, mas com calma e com tempo, as palavras e os poemas começaram a surgir, recordou Viton Araújo, à agência Lusa.

“Nós, poetas, estamos acostumados com as palavras e a inventar palavras e a criar palavras com outras, e isso acaba naturalmente surgindo e acabou surgindo para todos. Temos aí poemas muito bons e também ilustrações incríveis”.

Ana Moreira, António Jorge Gonçalves, Bernardo Abreu, Caró Lago, DJ Huba, Eduardo Tavares, Filipa Pinto, Filipe Homem Fonseca, Gilson Barreto (Dela Mantra), Gisela Casimiro, João Silveira, Jorge Barrote, Jorgette Dumby, José Anjos, Lila Tiago, Luís Perdigão, Marcelo Dalbosco, Maria Giulia Pinheiro, Marina Ferraz, Marmota Vs Milky, Miguel Antunes, Nilson Muniz, Nuno Piteira, Paola D’Agostino, Rita Capucho e Sérgio Coutinho são os outros artistas participantes nesta “Reconstituição Portuguesa”, que abre com a imagem de um lápis de onde emerge um cravo (como outrora do cano de uma arma).