Encerrados há mais de um ano, o Musicbox, situado na agora quase deserta ‘rua cor de rosa’, em pleno Cais do Sodré, o B.Leza, no Cais do Gás, com vista para o Tejo, e o Hot Clube de Portugal, na Praça da Alegria, são hoje espaços onde o silêncio já não reina apenas de dia.
Embora as salas de espetáculos tenham podido reabrir no ano passado, a partir de 1 de junho, e possam reabrir este ano, a partir de 19 de abril, para estes espaços tal não lhes permitiria sobreviverem.
“A nossa reabertura, no sentido de sermos viáveis, só pode contar a partir do momento em que isso seja possível [reabertura dos espaços de dança], porque este tipo de salas pequenas, de programação, não é viável só a fazer um espetáculo. Mesmo que não houvesse limitações para a componente de espetáculos, estas salas só são possíveis se trabalharem em horários muito prolongados e se trabalharem a componente de ‘clubbing’. Tudo o que não seja isto não torna viável estes projetos”, explicou à agência Lusa Gonçalo Riscado, diretor da CTL, empresa proprietária do Musicbox.
Nos tempos pré-pandemia da COVID-19, o Musicbox tinha uma lotação de cerca de 280 pessoas por concerto, com as regras atuais poderia receber apenas umas 20.
“Por isso, espaços como o Musicbox e outros que fazem parte desta rede de salas de programação só serão viáveis outra vez quando acabarem essas restrições. São espaços de estar em pé, de contacto físico e não há forma de poderem funcionar de outra maneira”, disse à Lusa.
Sem perspetiva de reabertura, embora o cartaz à porta garanta que “já faltou mais”, foram “as reservas, os empréstimos e os apoios” que adiaram a ideia de encerrar definitivamente o espaço.
“Primeiro foram-se as reservas, a seguir fazem-se os empréstimos todos e vai-se jogando com os apoios que foram surgindo - o ‘lay-off foi crucial e crítico no início, sem ‘lay-off’ já não estávamos cá, isso é certo. O Apoiar veio tarde, mas em boa hora, no final do ano passado, há a promessa de que possa continuar para os espaços que não podem funcionar e é crucial. No nosso caso, e das salas de programação de música de Lisboa, houve aqui um momento-chave, que foi quando a Câmara Municipal de Lisboa [CML] percebeu as nossas dificuldades”, recordou.
No B.Leza, onde nas paredes ainda há cartazes com a programação de março de 2020, o ‘processo’ de sobrevivência foi semelhante. Além da “esperança de que a coisa corra melhor em breve”, Madalena Saudade, uma das proprietárias do clube, lembra que as contas “não estavam a zero”: “Obviamente que, se estivéssemos a zero, não conseguiríamos sobreviver”.
“Depois temos concorrido a tudo o que é apoio, desde o Apoiar, o Protege da CML e vivemos com menos. Há serviços que suspendemos, como a segurança, a empresa de limpeza. Tudo fica em suspenso, como nós”, relatou.
Foi também o ‘lay-off’ que permitiu que, até hoje, o B.Leza, tal como o Musicbox, não tenha tido de despedir ninguém. “Mantemos toda a gente que tinha contrato connosco em ‘lay-off’”, disse à Lusa.
O caso do Hot Clube é diferente. Aqui, a sobrevivência é em grande parte garantida pelos sócios do clube e pela escola de jazz.
“O Clube não é uma questão de sobreviver como tal, mas é óbvio que um sócio de um clube de jazz está à espera de ver concertos de jazz. E não havendo concertos há mais de um ano, é natural que os sócios comecem a desmobilizar. Não é o caso, mas não podendo haver concertos num curto espaço de tempo é natural que as pessoas desmobilizem e deixem de pagar as quotas. E, nesse caso, então era o fim de uma história de 73 anos”, referiu a presidente do Hot Clube de Portugal, Inês Homem Cunha.
Os sócios, explicou, com o pagamento das quotas mensais garantem os custos fixos do clube. Os músicos que ali atuam são pagos com as receitas de bilheteira.
Além do clube, o “Hot tem um braço armado que é a escola, que continuou a funcionar”. Com o clube encerrado há um ano, “a escola permite manter um bocadinho a chama”. “Vamos fazendo vídeos 'online' com alunos, professores, fizemos aulas abertas”, contou.
Apesar disso, Inês Homem Cunha salienta que os concertos ‘online’ não são solução. “É uma coisa que não deixa os músicos satisfeitos, não tem receitas que justifiquem e não é a mesma coisa que estar aqui. É muito triste para os músicos e penalizador para as instituições”, defendeu.
No verão, o Hot Clube ainda conseguiu organizar alguns concertos presenciais, porque tem um pequeno espaço exterior onde conseguiu ter cerca de 20 espectadores, e porque foi convidado pela Junta de Freguesia de Santo António a dar música à Praça da Alegria.
Em breve, agora devido ao apoio da Câmara Municipal de Lisboa, o Hot Clube, o Musicbox e o B.Leza, bem como outras nove salas de programação musical da capital, vão poder receber público para alguns concertos, e por isso Gonçalo Riscado falava no “momento-chave” em que a autarquia “percebeu as dificuldades” destes espaços.
“Percebeu que, apesar dos apoios que já existiam, continuávamos a perder dinheiro todos os meses, percebeu que estava em risco este circuito – que é crítico para qualquer cidade, em termos de programação cultural, de diversidade, de atratividade das cidades –, e fizemos um projeto com a Câmara, que nos apoiou nos custos que ainda continuávamos a ter, e que vai permitir também retribuirmos com programação, logo que seja possível”, contou à Lusa.
Gonçalo Riscado sublinha que não se trata de uma reabertura. “Nem podemos falar em reabertura. É, no fundo, uma retribuição. Todas as 12 salas de Lisboa que fazem parte do Circuito estão muito comprometidas com este trabalho e com esta função que têm na cidade. Contamos, a partir de maio, com todas as restrições, que não nos tornam ainda espaços autónomos e sustentáveis financeiramente, retribuirmos fazendo programação e fazendo chegar alguns recursos a muitos artistas e técnicos que precisam de tocar”, adiantou.
Inês Homem Cunha reforça a ideia da importância do apoio da autarquia para programação: “Permite que o clube funcione, mesmo que a entrada seja muito limitada, mesmo que só possamos ter aqui dentro entre 15 a 20 pessoas. O apoio da Câmara vai permitir fazer programação independentemente de haver um número grande de entradas vendidas ou não. Isso é fundamental”.
O Musicbox, o B.Leza e o Hot Clube estão entre as 26 salas de programação musical que formam a associação Circuito, criada no ano passado para representar um setor que, desde março de 2020, já começou a desaparecer.
“Já desapareceram algumas salas e temo que outras vão desaparecer. Pior do que isso, deviam estar a aparecer mais, porque somos muito poucos no país”, afirmou Gonçalo Riscado, que lidera a Circuito.
O empresário realça a importância destas salas na carreira de muitas bandas e artistas quando começam a dar os primeiros passos. “Vai haver aqui uma quebra de criatividade, de quantidade. Não sabemos o que vai acontecer, mas eu acho extremamente preocupante. E quando olhamos a nível nacional e em termos de estratégias nacionais para este setor, de facto sentimos que não há um foco naquilo que é a base de todo o circuito da música”, lamentou.
Gonçalo Riscado assume que “é difícil às vezes catalogar” estas salas, porque “umas têm de ter uma componente de discoteca, outras de restaurante, para serem viáveis”, fazendo com que não tenham “a imagem limpa do espaço de cultura”.
“Mas acho que já é inquestionável a sua importância e relevância em todo o ecossistema, e não há um foco em proteger algo que está na base de tudo”, disse à Lusa.
O apoio da Câmara de Lisboa permite que a Circuito continue “a acreditar num futuro em que estas salas continuarão a fazer o seu trabalho”.
“Eu estou do lado dos otimistas, apesar de, em janeiro, ter sido muito complicado manter o otimismo”, afirmou Gonçalo Riscado, partilhando que tem “neste momento o conforto de saber que [o Musicbox] consegue existir até ao final do ano e manter a sua equipa, o que dá uma segurança muito grande”.
O empresário tem noção de que se trata de “uma estabilidade de curto prazo”, e que “tudo pode mudar de um momento para o outro”. Mas esta estabilidade a curto prazo de poder existir dá-nos energia para continuar a pensar e a acreditar em Lisboa como uma cidade cultural e muito interessante para fazer coisas. Eu mantenho esse otimismo e quero fazer parte desse futuro”, afirmou à Lusa.
Embora menos efusiva, Madalena Saudade também tenta olhar para o futuro. Quando questionada sobre se neste ano já tinha pensado que o B.Leza poderia ter de encerrar definitivamente, respondeu: “Claro que sim”. “Nos meus maiores pesadelos, claro que sim. Mas não posso ficar aí, tenho de acreditar”, partilhou.
A empresária salienta que, “se os apoios não continuarem, é muito mais do que a falência”.
“Não vejo a mínima possibilidade de sozinhos conseguirmos mais seis meses, quanto mais um ano. Obviamente que, sendo este um problema de saúde pública, que é global, é absolutamente indispensável que nos juntemos e que nos ajudemos uns aos outros. E desde logo o Estado aos seus cidadãos, seja de que forma for. Seja enquanto trabalhadores, seja enquanto artistas, temos de ter ajuda”, afirmou.
Não arrisca datas para um possível regresso, mas sabe que, quando acontecer, terá de ser “de forma viável”, e quer acreditar que tal possa acontecer quando o país atingir a imunidade de grupo.
“Estas casas foram feitas considerando uma determinada dimensão, uma determinada escala. E uma casa que tem uma lotação de 300, 400 ou mil pessoas não pode funcionar com 100 ou com 50. Falam da imunidade de grupo no final do verão, e eu acredito que, a partir daí, possamos pensar seriamente em voltar. Na pior das hipóteses, quero eu acreditar que [seja] no final do ano”, disse à Lusa.
Até lá, estes e outros empresários aguardam pacientemente pelo dia em que o Governo decida quando podem voltar a programar sem restrições.
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