O livro conta a história de um pianista virtuoso, que se dedica inteiramente a buscar a perfeição na sua arte, mas também nos outros, e que se prepara para surpreender o mundo com a interpretação daquela que é considerada a peça intocável de Liszt, o “Rondeau Fantastique”, numa 'tournée' pela Europa, que o sagrará como o maior intérprete daquele compositor.

Mas a vida tem outros planos para ele e um acidente deixa-o amputado de uma mão, comprometendo a sua carreira musical e a perfeição que almeja.

A ideia de criar a personagem de um pianista amputado partiu da sua própria experiência de vida, num período em que se sentiu amputado na sua criatividade e confrontado com uma perda de identidade, contou o autor em entrevista à agência Lusa.

Formado em música, o brasileiro Rafael Gallo deixou a carreira musical para se encontrar na escrita, que lhe deu “realização pessoal”, mas as dificuldades financeiras obrigaram-no a arranjar um emprego “para pagar as contas” e a escrever no tempo livre.

“Naquela época, eu prestei um concurso, me tornei escrevente do Tribunal de Justiça, e aí o estranhamento foi enorme, foi um choque muito grande para mim, porque eu vinha trabalhando com arte, com música, era o que eu gostava, e de repente eu estava ali fechado numa repartição. É um trabalho burocrático sem graça”.

Ao mesmo tempo, reconhece que nem sequer era bom naquilo que fazia e foi toda uma “mudança estranha e difícil de lidar”.

Foi em 2016, quando Rafael Gallo entrou no novo trabalho, que teve o primeiro episódio de depressão e que começou a escrever o livro.

Quis colocar o assunto na história e achou interessante que o seu personagem, Rômulo Castelo, fosse assim: uma pessoa que perante a amputação fica deprimida, mas não lida com isso.

Por isso, diz que o livro nasceu numa depressão, que durou meses e teve acompanhamento médico, mas no final apercebeu-se de que já tinha uma “inclinação fisiológica”, pois sempre foi uma pessoa melancólica, introspetiva e com “uma certa dificuldade para algumas coisas”.

Escreveu até ao final de 2019, quando terminou a primeira versão, e em 2020 “veio o grande clássico da nossa época”: a pandemia, trazendo com ela incógnitas futuras, a morte de pessoas e um “presidente [Jair Bolsonaro] a debochar de tudo isso”.

Então, entre 2020 e 2021 teve outro episódio depressivo e quase desistiu de escrever, mas a abertura do edital do concurso do Prémio José Saramago fê-lo repensar.

Ponderou escrever um novo romance “rapidíssimo, em meses”, mas percebeu que seria impossível.

“Falei: bom, não vai dar certo, a única coisa que tenho é a ‘Dor Fantasma’ e esse prémio é o meu sonho. Ou tento com o ‘Dor Fantasma’, ou não tento. Aí, peguei o ‘Dor Fantasma’ para refazer e refiz, porque esse processo [da depressão] também me mudou muito. Sou outro Rafael, vivi uma outra vida”.

Nesse período corrido, de refazer a história, de cumprir prazos, de submetê-la ao prémio e de ainda a entregar a um editor, sentiu-se movido pela adrenalina e foi saindo do segundo episódio de depressão.

O primeiro novo choque foi a recusa do editor, que aceitou um outro livro que Rafael Gallo lhe entregou, de contos, mas recusou o romance.

“Depois que eu mandei o livro, começa a baixar a adrenalina e eu falei: Rafael por que é que você foi mandar esse livro, ninguém gosta desse livro, as pessoas já leram e não gostaram, o editor já leu e não quis. Prémio Saramago. As pessoas aqui não estão gostando, olha quem são os jurados, o prémio que eu sonhava, queimei minha ultima chance”, contou.

Nessa altura começou a “sentir o hálito do fantasma” da depressão novamente, os primeiros sinais a instalarem-se, e “aí veio a notícia” do prémio.

Para Rafael Gallo, a escrita do livro foi uma “vingança”, foi um afirmar: “isso aqui não vai me vencer de todo, eu ainda posso escrever sobre, ainda posso vencer de alguma maneira”, recordou.

Venceu essa batalha e, como uma “desforra”, venceu o Prémio José Saramago, que já era um sonho antigo.

“Eu sou um fã do prémio, eu acompanho, poderia responder um jogo de trivial sobre o prémio. Eu falo todos os vencedores, eu li quase todos, eu falo até na ordem. Acompanho, sei o que acontece, sabia tudo, adoro alguns dos livros que ganharam, são os meus preferidos, autores. É o meu panteão pessoal, então para mim, no meu panteão pessoal eu entro também, é um sonho. Ainda mais nesse momento que eu estava tão para baixo foi uma salvação, uma salvação desse Rafael que estava-se perdendo, estava-se afundando, estava-se apagando”.

“O prémio deu-me essa restauração, ele me restaurou”, acrescentou.

Rafael Gallo confessa que adoraria ver o seu romance adaptado ao cinema, até porque durante algum tempo trabalhou com música para audiovisual e cinema, uma das suas paixões.

“Não faço pensando nisso, não vou escrever algo, sequer uma cena, sequer um diálogo, a pensar que se um dia fizer um filme, isto vai ficar bom. Eu estou escrevendo um livro, tem que ser um livro. Mas sim, claro, se alguém falar ‘faça um filme’, adoraria”.

Formado em música pela Universidade Estadual de São Paulo, com mestrado em meios e processos audiovisuais, e com estudos na área de música para cinema, Rafael Gallo toca ainda violão e piano, embora hoje seja um ‘hobby’.

Contudo, ao contrário de Rômulo Castelo, de “Dor Fantasma”, cujo repertório é todo clássico, Rafael Gallo ouve mais MPB, Jazz e Rock.

“Dor Fantasma” chegou esta semana às livrarias, editado pela Porto Editora.