“Eu acho que a memória é essencial. No meu caso, sou um escritor de muito pouca imaginação, mas de muita memória. Se você me contar uma história bem contada e me deixar marcado por ela, pode virar conto. Quando? Não sei, no momento em que eu sentir que a história é minha ou que eu sou personagem ou que eu vi o que nunca vi, mas você me contou. É assim que eu trabalho”, disse Nepomuceno à Lusa, à margem do Correntes d’Escritas, festival literário que hoje termina na Póvoa de Varzim, com a entrega dos prémios desta edição.

O escritor e colunista estabelece a diferença entre imaginação e fantasia, com a primeira a representar “o resultado de trabalho coletivo, de tudo o que você ouviu, de tudo o que te levou a imaginar aquilo”, enquanto a segunda é “falsa”.

Assim, “a memória é a matéria-prima de todo o escritor”, mesmo daquilo que parece estar distante da realidade.

Nepomuceno, que traduziu Gabriel Garcia Márquez, recorda que o Nobel da Literatura, colombiano, disse não haver “uma única linha em tudo o que ele escreveu e publicou que não tenha partido da realidade”.

“Outra lição do Garcia Márquez. Se você colocar na sua ficção um dado verosímil, todo o resto da mentira passa a ser crível. Eu perguntei para ele 'por exemplo?'. Ele falou: ‘Tem dois caras na beira de um rio, pescando. Aí, um fala para o outro assim: Rapaz, olha lá, quatro elefantes voando’. Eu falei para ele que é absurdo. ‘Claro que é absurdo, mas se eu te contar assim: eram dois caras na beira de um rio pescando. Aí, um deles fala assim: Rapaz, olha lá, quatro elefantes voando e um é albino’”. Neste último caso a perspetiva sobre a história muda.

Nesse momento, “você para para pensar se existe elefante albino ou não, você já está acreditando”.

Nascido em 1948, Eric Nepomuceno começou a trabalhar em jornais aos 17 anos e tem publicados, no Brasil, vários livros de contos e de não-ficção, figurando por várias vezes na lista de premiados do Jabuti.

Em Portugal, estreou-se em novembro com o livro de contos “Bangladesh, talvez e outras histórias”, que reúne 16 contos da carreira do escritor, numa sequência sugerida pela editora.

“Você tem contos que eu escrevi há muitos anos, quando era jovem, e contos bem mais recentes. Achei que ficou um mosaico bem interessante. Se é bom ou não o leitor dirá”, disse Nepomuceno, que realçou ter proposto que a primeira obra em Portugal fosse “Memória de todos nós”, um conjunto de histórias reais, passadas na Argentina, no Chile e no Uruguai, no contexto das suas respetivas ditaduras.

O livro, segundo Nepomuceno, “teve muito impacto no Brasil – relativo impacto, se preferir – e perguntaram porque é que não tinha nenhuma história de brasileiro”, mantendo o autor a sua resposta hoje como então: “Tenho vários amigos que passaram horrores, por tortura, por exílio, por banimento. Nenhum deles viu seus algozes julgados. Nenhum deles viu justiça. É uma história que o Brasil, covardemente, com uma corte suprema [tribunal supremo] que se nega a revelar, a resgatar e sobretudo a fazer justiça”.