Editado pela Tinta-da-China, este novo livro de Ricardo Araújo Pereira aborda temas tão diversos como o silêncio, o império dos telemóveis e das redes sociais, a liberdade de expressão ou a metafísica do pecado, em crónicas humorísticas, que muitas vezes se debruçam apenas sobre “trivialidades que não iluminam nada”, como o próprio refere numa das crónicas.

São trivialidades que “existem só para me irritar e me deixam permanecer na escuridão, sossegado”, escreve Ricardo Araújo Pereira numa crónica em que satiriza os casais que falam pelos seus bebés – “Papá, tenho fominha. Está na hora do meu leitinho” -, os “logros gastronómicos”, como o "esparguete de curgete" e o "arroz de couve-flor", ou o uso da expressão “tchim-tchim” para brindar, quando este som duplo nunca se produz.

O elogio do silêncio fica bem patente numa crónica intitulada “Fui ao mercado comprar silêncio”, e que parte da suspeita, em dada altura, de que o presidente do Brasil teria tentado comprar o silêncio de outra pessoa.

Ricardo Araújo Pereira confessa que ficou “fascinado” com a ideia.

“Que coisa linda: comprar silêncio”, escreve, para acrescentar mais à frente que, como pai de duas crianças, não pode evitar uma “empatia enorme pela hipotética intenção de Michel Temer”.

Os telemóveis e as redes sociais são igualmente alvo do escárnio do humorista, que questiona o que seria da tragédia de Romeu, se existissem smartphones e ele pudesse ter sido contactado por Frei Lourenço a avisá-lo de que Julieta não estava morta, restando-lhe apenas publicar no ‘snapchat’ umas fotos com a legenda #falsofalecimento.

A boca dos ricos é mais fechada do que a dos pobres, tanto para rir como para comer, os gatos estão convencidos da sua superioridade, ao passo que os cães acham quase tudo espantoso e vivem em maravilhamento constante, e as moscas são supérfluas e fascinadas por tudo o que é podre, o que representa a “descrição perfeita de um humorista”.

Estas são outras constatações sobre as quais escreve Ricardo Araújo Pereira em textos que passam também pela defesa da liberdade de expressão e pela metafísica do pecado, por Cristiano Ronaldo e Kierkegaard, por Candy Crush e Flaubert.

Pelo caminho, desmonta o mito da autoajuda e discute problemas de linguagem que “só a RAP [Ricardo Araújo Pereira] apoquentam” – descreve a editora -, como é o caso de certos anglicismos usados para designar quase todas as atividades físicas e desportivas.

“Quando eu era pequeno havia uma atividade física chamada ‘correr’. Era muito parecido com o atual running, mas creio que era mais barato. Não sei ao certo em que altura as pessoas deixaram de correr para passarem a praticar running, mas foi um processo gradual – que, aliás, passou pelo jogging”, escreve, numa crónica intitulada “o raningue”.

Ricardo Araújo Pereira reflete também sobre o facto de o ser humano ser o único animal que “ama e defeca”, salientando que é sua função recordar ao leitor que defeca, e sobre a superioridade da língua portuguesa, cuja “fulgurante majestade” lhe surgiu sob a forma da palavra “chulé”, que compara a "saudade", por não ter equivalente em inglês.

Ao longo destas 69 crónicas, o autor questiona ainda intolerâncias alimentares contemporâneas e o intemporal complexo de Édipo, levanta questões prementes para os casais de hoje, como a escolha entre ter filhos ou ser feliz para sempre, e questiona-se sobre que papel desempenha no mundo a pessoa, a gente, o povo e a humanidade.

Nos seus textos, são várias as referências a obras, autores e citações, evidenciando as influências literárias na sua vida e o amor pelos livros, que lhe merecem algumas crónicas, designadamente sobre os “maus-tratos” a que são sujeitos: cantos de folhas dobradas, lombadas usadas para marcar páginas e capas estragadas, como o seu exemplar de “Crime e Castigo”, de Dostoiévski, que passou a Dostoiév, por causa de uma mancha de café.

No meio da brincadeira, Ricardo Araújo Pereira fala a sério e deixa transparecer algumas das suas preocupações e emoções, como o receio da morte ou a importância da avó na sua vida, e que é tema de uma crónica, na qual consegue fazer a ligação entre amor e batatas: as batatas fritas feitas pela avó - sempre moles pelo tempo de espera até serem comidas – são as melhores, porque foram feitas com o amor de alguém que não quis nunca arriscar que não estivessem prontas quando ele quisesse almoçar.

Na crónica de abertura, que dá título ao livro, Ricardo Araújo Pereira apresenta-se e explica aos seus leitores brasileiros que vai escrever crónicas sobre a vida, “esse caminho de dor, angústia e desespero que culmina na morte”, em textos humorísticos, mas adianta logo que não sabe grande coisa sobre a vida.

Aliás, na crónica “Htide Faip [Edith Piaf ao contrário] é o meu nome”, o autor afirma que, contrariamente ao que a cantora declarou certa vez – que não se arrependia de nada -, arrepende-se de tudo.

“Isto que vou fazendo não é exatamente viver. É o rascunho de uma vida. Precisava de outra para passar tudo a limpo e comportar-me como deve ser”.