Depois de uma noite em que os timbres portentosos e opulentos foram cartão de visita , a segunda noite do Festival Caixa Alfama trouxe-nos um perfume menos activo, mas daqueles que fica na roupa durante muito tempo. Um perfume cuja essência se baseou em três elementos: a amabilidade de Raquel Tavares, a frescura de Cuca Roseta e a alegria de António Zambujo. Para infortúnio do espectáculo, ontem o Palco Caixa não teve casa cheia e a contenção do público foi superior à da noite anterior.

Em momento algum, Raquel Tavares escondeu o seu bairrismo profundo, até porque sentiu que a plateia assinava por baixo de cada vez que o expressava. Afinal de contas, estava totalmente em casa e tinhas razões mais do que suficientes para andar à sua vontade. Para além de elevar constantemente o seu nicho alfamista às nuvens, a fadista mostrou grande reverência para com o público feminino, ao qual dedicou alguns dos temas entoados, procurando ao máximo a cumplicidade da sua assistência. Foi prazeroso ver a sua versatilidade, ao pegar na guitarra uma ou outra vez e aventurar-se sem o amparo dos seus músicos.

Aventureira também foi Cuca Roseta, que pôs os trunfos na mesa logo desde início, ao abrir a capella, curiosamente, com "Rua do Capelão". As palavras eram tão melosas quanto a sua voz angelical: viver abraçada ao fado, morrer abraçada a ti. Parecia maravilhada com o ambiente ao seu redor e reconheceu que «para os fadistas este é dos cenários mais bonitos do mundo para se cantar». Cuca Roseta foi transparente quanto à sua admiração por Amália Rodrigues, à qual dedicou um fado da sua própria autoria, a "Marcha da Esperança". De Amália, cantou "Porque voltas de que lei" e "Foi Deus", onde se tornaram bem perceptíveis a sua longura e afinação vocais. À semelhança da primeira noite, houve também oportunidade para desfrutar da individualidade instrumental. Num registo por vezes algo auto-biográfico, Cuca Roseta trouxe-nos um fado cujas composições lírica e melódica foram inteiramente da sua lavoura, o seu primeiríssimo fado "Nos teus braços". O momento ideal para algum enamoramento no seio do público.

António Zambujo foi o último a subir ao palco. Sim, já não restam dúvidas, é mesmo possível manusear a guitarra tão fluentemente e ter, simultaneamente, tão grande disponibilidade para cantar. De facto, "Algo Estranho Acontece" com este sujeito. Atrevido, sem ser grosseiro. Manso, sem ser monótono. Brincalhão, sem ser decadente. Não há como ficar inerte perante o lirismo dos seus versos. É sempre encorajador perceber que o público para o qual cantamos está atento às palavras que são proferidas. Ontem, isso aconteceu inúmeras vezes, que o testemunhem todos aqueles que soltavam uma gargalhada de cada vez que Zambujo dava por concluídas as suas narrativas musicais. É disso que se trata o seu fado: episódios consuetudinários, lengalengas apimentadas, idas ao confessionário. Zambujo não precisa de rimar para gerar concórdia. O seu arsenal é composto pelo sugestividade da aliteração e pela imprevisibilidade do vocabulário. Para o resultado ser estonteante, basta simplesmente adicionar uns gramas do seu sorriso glamoroso e cativante.

Supreende-o mais a ele do que a nós o facto de o público dominar com distinção as letras das músicas: «Também sabem cantar esta?!», perguntou enquanto tocava "Lambreta". Brindou-nos com peças de um cancioneiro da velha guarda: Dá-me uma gotinha de água, dessa que eu oiço correr, entre pedras e pedrinhas, alguma gota há-de haver. E sacou-nos alguns assobios para abrilhantar "Eu ia pela Rua". Os ânimos acaloraram quando tocou "Flagrante" e "Zorro". Além da guitarra portuguesa e do contrabaixo, fez-se acompanhar dos clarinetes de José Miguel Conde e do trompete de João Moreira, que adocicaram ainda mais o seu fado. Um festival que terminou com chave de ouro. Venham mais!

Fotografias por Rita Sousa Vieira