“Com Borges” é o título do livro que liga “dois génios”, intelectual e afetivamente: o escritor, poeta, tradutor, critico literário e ensaísta argentino Jorge Luis Borges, o homenageado nesta obra, e o escritor, tradutor, editor, ensaísta e romancista, nascido na Argentina, mas nacionalizado canadiano, Alberto Manguel, que lhe presta homenagem.

Editado originalmente em Portugal em 2006 pelas edições Âmbar, com tradução de Miguel Serras Pereira, esta obra volta aos escaparates das livrarias portuguesas quase 15 anos depois, numa nova edição da Tinta-da-China, com tradução de Rita Almeida Simões e com um posfácio inédito na edição portuguesa.

Este é um livro que abre portas para o mundo de Jorge Luis Borges, na medida em que foi escrito por Alberto Manguel, 49 anos mais novo, que, ainda jovem de 16 anos, se tornou leitor do autor de “Ficções” e "Aleph" e, ao longo de quase cinco anos, leu em voz alta para Borges os livros que a sua cegueira não lhe permitia ler.

É a história dessa experiência que é relatada neste livro, desde o primeiro contacto entre ambos, até às leituras partilhadas, que influenciaram Manguel, que o fizeram despertar para a vocação da literatura e que fizeram de Jorge Luis Borges um dos seus grandes mestres, como sempre assumiu.

“Em 1964, em Buenos Aires, um escritor cego convidou um livreiro de 16 anos para lhe ler em voz alta. Foi assim que, durante quatro anos, se cruzaram em convívio próximo Jorge Luis Borges, escritor de dimensão universal, e Alberto Manguel, que veio a tornar-se um dos mais conceituados bibliófilos do mundo”, descreve a Tinta-da-China.

Nesse período, “partilharam momentos domésticos, leituras e releituras, conversas, reflexões e curiosidade pela vida e pelos livros”, e agora “o que Manguel partilha é uma memória afetiva e pessoalíssima de um homem complexo mas apaixonante, por quem até hoje guarda uma admiração terna”, acrescenta a editora.

Logo a abrir o livro, Alberto Manguel recorda o momento em que, apoiado “na fachada de mármore vermelho do número 994”, premiu um botão que marcava “6B”, entrou no “vestíbulo fresco do edifício” e subiu os seis lanços de escadas.

“Toco à campainha e a empregada abre-me a porta, mas, antes que ela tenha tempo de me deixar entrar, Borges surge detrás de um reposteiro pesado, muito direito, com o fato cinzento abotoado até cima, o colarinho branco e a gravata de riscas amarelas ligeiramente de lado, e avança ao meu encontro arrastando levemente os pés”, descreve.

Cego desde pouco antes dos 60 anos, Jorge Luis Borges deslocava-se com hesitação, mesmo num espaço que conhecia bem, como o de sua casa, continua a descrever Alberto Manguel.

“Esticando a mão direita, cumprimenta-me com um aperto frouxo e distraído. Não há mais formalidades. Volta-se, entra à minha frente na sala e senta-se, de costas retas, no sofá que dá para a entrada. Eu sento-me na poltrona à sua direita e ele pede (mas as perguntas dele são quase sempre retóricas): ‘Ora bem, lemos Kipling esta noite?’”.

Com esta nota introdutória, Alberto Manguel mergulha então nas “memórias afetivas”, que remontam à altura em que, tudo começou: ele, com 16 anos, andava na escola e trabalhava numa livraria anglo‑alemã, em Buenos Aires, chamada Pygmalion; Jorge Luis Borges, 65 anos, era frequentador assíduo dessa livraria.

Borges entrava na Pygmalion ao final da tarde, quando voltava do trabalho na Biblioteca Nacional da Argentina, de que era diretor – cargo que veio a ser também ocupado por Alberto Manguel, entre 2016 e 2018.

“Certo dia, depois de escolher alguns livros, perguntou-me se eu podia, desde que não tivesse mais nada que fazer, ler para ele à noite, pois a mãe, já na casa dos 90, se cansava facilmente”, relata.

Esta era uma pergunta que Borges fazia a quase toda a gente, desde estudantes, a jornalistas, passando por outros escritores, o que significa que existe “um vasto grupo de pessoas que leram pelo menos uma vez para Borges”.

“Tinha 16 anos. Aceitei e, três ou quatro vezes por semana, visitava Borges no apartamento diminuto que ele partilhava com a mãe e com Fany, a empregada”, conta Manguel, começando por afirmar que, de 1964 a 1968, teve “a sorte de ser um dos muitos privilegiados que leram para Jorge Luis Borges”.

Alberto Manguel é hoje conhecido por ser um dos maiores bibliófilos, como o foi Jorge Luis Borges, e é com uma memória deste escritor argentino, retirada do livro “Arte Poética”, que começa: “A minha memória transporta‑me a certa tarde de há 60 anos, à biblioteca do meu pai em Buenos Aires. Vejo o meu pai; vejo o lampião a gás; quase consigo tocar as estantes. E, embora a biblioteca já não exista, sei exatamente onde encontrar 'As Mil e Uma Noites' de Burton e a 'Conquista do Peru' de Prescott”.

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