O grande auditório do Teatro Municipal Rivoli recebe, no sábado e no domingo, a peça “Versa-vice”, estreada na 22.ª Bienal de Dança de Val-de-Marne, França, em março, e na segunda-feira a artista de Viana do Castelo apresenta, no outro palco da mesma casa, o concerto “Madmud”, que se vai mutando desde 2008.
O objetivo de “Versa-vice” é “subverter, de forma onírica, o significado das coisas”, desde logo na troca da popular expressão, e a criadora explica à Lusa que tem também a ver com a relação entre humanidade e natureza, entre ações e energia.
“Para mim, a peça é dançada por seres humanos mas não tem só a ver com o humano, mas com uma energia... a energia do planeta. Faço muitas representações da natureza, mas muito disfarçadas através das nossas ações humanas. Pensei no vento e nas árvores, nas coisas que observo na natureza - que gosto imenso de ver toda esta combinação -, [nos] animais”, descreve.
Assume que é “mais difícil explicar” as criações porque não procura “seguir um tema, explicar um tema através de movimentos”, mas antes criar “de forma muito intuitiva”.
“Versa-vice” inclui também música e coreografia originais, neste último caso com a colaboração dos intérpretes: Andriucha, Beatriz Marques Dias, Bruno Senune, Catarina Carvalho, Cláudio Vieira, Filipe Baracho, Luís Guerra, Matthieu Ehrlacher e Nina Botkay.
O humano como reverso da medalha da natureza, ou filtro, ou fator de “observação”, é igualmente posto em palco, das “reações do cérebro, mas também do corpo, da energia e da energia que envolve” cada um, à forma como o humano afeta o resto.
“Como a nossa energia afeta as outras energias e vice-versa. Ou como na peça, que é ao contrário, como é que a natureza me influencia. Que energias me traz. Os ambientes - e podem ser outros ambientes sem ser a natureza. Como é que o campo energético me envolve, me faz estar ou ser. Acaba por ser um bocado se eu posso controlar esse campo energético ou não. Também tem a ver com a situação de grupo”, acrescenta.
A organização de um grupo, como “se manifesta, como passa a ser um corpo em vez de muitos corpos”, e como “tudo é uma coisa só”, é assim questionado pela coreografia.
O ambiente e a questão das alterações climáticas não são refletidos diretamente no processo de criação de Tânia Carvalho, diz, mas surgem “no dia-a-dia”, constituem uma preocupação que depois pode verter para esse campo.
“Para o palco, levo o que me está a sair no momento em que estou a criar. Mas eu sou vegan e nas minhas peças sempre que tenho sapatilhas são vegan, uso pele e não materiais que venham de animais. (...) Os figurinos são reciclados, na maior parte. Mas não faço de propósito para fazer uma peça a pensar no planeta. Faço sem querer, 'entre aspas'”, admite.
Esta preocupação quotidiana com o ambiente reflete-se mesmo fora das questões climáticas, “mas a nível energético e emocional”, e como poderemos, enquanto sociedade, “estar mais envolvidos com o que nos rodeia, a nível energético, e conseguir fluir melhor nas coisas”.
Estreado em França, o espetáculo conta também com a voz da coreógrafa e um poema de Fernando Pessoa, e essa primeira apresentação “correu muito bem, melhor do que se imaginava”, e é apresentada aqui sem alterações.
Embora esteja “muito feliz” com a condecoração do Governo francês, que lhe atribuiu o título de Cavaleira da Ordem das Artes e das Letras, considera que esta distinção recente não influencia nada, apenas podendo aumentar “a curiosidade por parte do público”.
Quanto a “Madmud”, o concerto que levará ao Rivoli depois das duas récitas, fá-lo desde 2008 e torna-se “mais autobiográfico” porque a acompanha ao longo de tanto tempo.
“É uma situação em que me sinto muito confortável, que me sinto bem a fazer. Acompanha a minha vida e transforma-se da mesma forma como eu me transformo. Não é fixa, de cada vez que faço o concerto [ele] é como eu estou naquele momento. É muito representativo da minha pessoa e de mim enquanto ser criativo e artista, mais, talvez, do que as peças, que ficam fixas. Raramente as mudo. O concerto, [esse], estou constantemente a alterar. É mais autobiográfico”, comenta.
A coreógrafa orientou ainda uma oficina, intitulada “Nem certo nem errado”, inserida na programação do DDD.
Nascida em 1976, a artista de Viana do Castelo reside atualmente em Lisboa e, ao longo de mais de duas décadas, tem apresentado coreografias e espetáculos em Portugal e no estrangeiro, a que se somam projetos musicais, como “Madmud”, “Idiolecto” e “dubloc barulin”.
Tânia Carvalho iniciou aulas de dança clássica aos cinco anos. Em 1991, entrou na Escola Superior de Dança de Lisboa e, em 1997, ingressou no Curso de Intérpretes de Dança Contemporânea Fórum Dança, também na capital portuguesa.
Fez ainda o Curso de Coreografia da Fundação Calouste Gulbenkian, e tem vindo a colaborar em vários trabalhos, tanto em interpretação como criação, com os coreógrafos Luís Guerra de Laocoi, Francisco Camacho, Carlota Lagido, Clara Andermatt, David Miguel, Filipe Viegas e Vera Mantero.
Como coreógrafa e intérprete criou, entre outras, as peças “Danza Ricercata” (2008), “Der Mann Ist Verrückt” (2009), “Olhos Caídos” (2010), “Síncopa” (2013), “Como se pudesse ficar ali para sempre” (2005) e “A Tecedura do Caos” (2014), além de “S” (2018), com a Companhia Nacional de Bailado.
É também criadora dos projetos musicais “Trash Nymph” e “Moliquentos”, e cofundadora do coletivo de artistas Bomba Suicida.
Em 2018, Tânia Carvalho foi alvo de um ciclo de homenagem sobre os seus 20 anos de carreira, que decorreu com a apresentação das suas criações mais emblemáticas e de novas obras, no Teatro Camões, pela Companhia Nacional de Bailado, e nos teatros municipais Maria Matos e São Luiz, em Lisboa.
Recebeu duas vezes o prémio de Melhor Coreografia da Sociedade Portuguesa de Autores, por “Icosahedron” (2012) e “onironauta” (2021), este último no ano em que iniciou “Papillons d’éternité”, com o artista francês Matthieu Erhlacher.
O cinema, a música e o desenho marcam igualmente a carreira da coreógrafa, que em 2022 foi alvo de retrospetiva no parisiense Théâtre de la Ville.
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