"O coração que me deixaste é uma casa difícil de habitar", canta Maria Antónia Mendes (ou Mitó) em "de cara a la pared", o tema de abertura do quarto disco d'A Naifa, e versos assim (ou canções como "carta para A.") relembram-nos que este é o primeiro álbum do projeto editado após a morte de João Aguardela (um dos seus fundadores, vítima de um cancro em 2009).

Não é que seja, por isso, um disco de luto. "não se deitam comigo corações obedientes" é antes um recomeço, mantendo bem vincada a personalidade d'A Naifa que já conhecíamos - onde não falta sequer o sentido de humor, porventura menos óbvio - e chegando, talvez devido a esse sentimento de perda, a uma intensidade nem sempre tão palpável - ou constante - nos antecessores.

A intensidade nasce, como sempre desde "Canções Subterrâneas" (2004), das palavras, que aqui são as de poemas de Adília Lopes e Ana Paula Inácio, colaboradoras habituais, ou de Maria do Rosário Pedreira, Renata Correia Botelho e Margarida Vale de Gato (já voltamos a ela), novos olhares que alimentam as vivências muito portuguesas e cada vez mais femininas d'A Naifa.

Videoclip de "de cara a la pared":

Movendo-se num ambiente dolente mas longe de sisudo, a música parte, mais uma vez, da voz inconfundível de Mitó (já nem imaginamos outra) ou da guitarra portuguesa de Luís Varatojo (que volta a garantir que o fado, sem ser apropriado pela Naifa, também não é parente distante das suas canções). À semelhança do núcleo de letristas, a formação do projeto sofreu renovações com a entrada de Sandra Baptista, no baixo, e Samuel Palitos, na bateria, aquisições já presentes na digressão do ano passado que agora se estreiam em disco.

Feito de novas cumplicidades, "não se deitam comigo corações obedientes" não é um capítulo radicalmente diferente nas experiências d'A Naifa, embora nos apresente, por vezes, traços que não conhecíamos. E aqui convém não passar ao lado da poesia de Margarida Vale de Gato, que assina a maioria das letras e foi, contou-nos a banda, uma das maiores inspirações para aquilo em que A Naifa de 2012 acabaria por se tornar.

Às vezes, essa ligação é tão certeira que nos perguntamos como é que a poetisa e a banda nunca colaboraram antes. Ouça-se o terceiro tema, "Émulos", dos mais crus e desarmantes que já ouvimos Mitó interpretar ("Foi como amor aquilo que fizemos/ ou tacto tácito? – os dois carentes/ e sem manhã sujeitos ao presente/ foi logro aceite quando nos fodemos"). Se as palavras, como uma boa faca, cortam e vão diretas ao assunto, a canção dá-lhes acompanhamento sonoro à altura, com uma sujidade pós-punk (um pós-punk muito lisboeta e implosivo, diga-se) que reforça a sua tensão e aura noturna.

A noite é, aliás, condimento habitual de "não se deitam comigo corações obedientes" e passa, mais do que por algumas canções, pela própria componente gráfica - caso da capa ou do videoclip de "de cara a la pared". Curiosamente, "A Noite" é também uma das canções mais emblemáticas a que João Aguardela deu voz, com os Sitiados, muito antes de A Naifa nos envolver nos seus percursos urbanos e errantes, assentes num tudo ou nada feito de instinto e emoção - típicos de corações desobedientes que, além de um bom disco, deram novo fôlego a uma banda capaz de superar as armadilhas do destino.

@Gonçalo Sá