Adolfo Luxúria Canibal – O “The Atrocity Exhibition”, de Ballard, surgiu um bocado por acaso. Sabíamos, à partida, que queríamos fazer um disco com canções curtas, um disco mais rock, e, quando procurámos uma orientação geral, uma inspiração a nível de conteúdo que pudesse enquadrar o trabalho de cada um dos compositores, surgiu o Ballard e a sua obra. Normalmente vamos buscar esse tipo de orientação a obras literárias e o “The Atrocity Exhibition” foi escolhido, pois é um livro central na escrita de Ballard, uma obra muito experimental, muito estranha, que aborda os assuntos que Ballard viria a explorar em toda a sua escrita posterior, desde o “Crash” ao “Millennium People”. Trata-se de um livro que, quer pela sua estrutura (organizada em pequenos parágrafos, numa espécie de novelas condensadas, que, aparentemente, não têm relação umas com as outras), quer pelo seu conteúdo, caía que nem uma luva na nossa ideia de pequenas histórias, pois cada um dos parágrafos podia originar uma canção, permitindo, simultaneamente, a conceptualidade do álbum – uma conceptualidade de certa forma aberta, que não nos obrigava, tal como no romance, a ter um princípio, meio e fim. Podíamos, então, misturar as canções, dispô-las como bem entendêssemos, desde que o resultado final do disco traduzisse uma impressão geral.

PP – O álbum chegou às lojas a 19 de Abril. Ouvindo, agora, o produto final, sentem que esse objectivo foi cumprido?

ALC – Sim, acho que a «coisa» funcionou. O CD reúne diversas histórias, foca bastantes assuntos diferentes, mas o que é certo é que uma pessoa, quando acaba de ouvi-lo, fica, na memória, com uma impressão geral – impressão essa dada pelo conjunto das diversas canções. Definitivamente, isso funciona.

PP – Algum assunto ou temática focada no discoque se destaque face às restantes?

ALC – A mensagem que prevalece – que é, no fundo, a que se destaca também no livro – é a seguinte: em que medida a massificação das novas tecnologias, com tudo o que lhe está associado, interfere no psiquismo do ser humano? E em que sentido o molda? Em que monstro nos transforma? Após a audição atenta do disco, é impossível não nos questionarmos acerca destes pontos e não suspeitarmos que, efectivamente, há «aqui» algo de psicótico. É essa constatação, aliás, que nos fica a «ressoar»: que toda essa interferência das novas tecnologias induz a uma alteração psicológica, no sentido de nos transformar em seres psicóticos.

PP – Fala-se num regresso às origens dos Mão Morta, um regresso a um rock and roll cru. É inevitável, em todas as carreiras, este regresso às origens?

ALC – Eu não lhe chamaria, propriamente, um regresso às origens. Chamar-lhe-ia, sim, uma reacção ao nosso projecto anterior, que nos tomou, de uma forma quase obsessiva – aliás, de uma forma mesmo obsessiva – quase cinco anos de vida, o “Maldoror”. Tínhamos que nos limpar, que nos purificar, de alguma forma, desse «mergulho» no “Maldoror”. Daí a necessidade de contraste, de procurar algo completamente diferente. Foi essa procura do oposto do “Maldoror” que originou o nosso desejo por canções curtas, por um rock mais primário.

PP – Como é criar um álbum, como o “Pesadelo em Peluche”, quando os membros do grupo estão geograficamente distantes entre si? Como se desenrola todo o processo?

ALC – Sempre existiu distância entre os diversos membros dos Mão Morta – basta ver que, quando criámos os Mão Morta, um dos membros vivia em Braga, outro em Coimbra e outro em Lisboa - e, apesar disso, sempre lançámos álbuns. Ou seja, a distância é algo que nos persegue desde os primórdios. Já nos habituámos a ela. Contudo, nos últimos tempos, nomeadamente com a velocidade da Internet, essa distância tem vindo a ser superada mais facilmente: trocamos ficheiros com facilidade, sabemos, em tempo real, o que cada um de nós anda a fazer, acrescentamos ideias, damos feedbacks, adicionamos novos sons, etc, ou seja, conseguimos, virtualmente, fazer uma espécie de ensaio (não é bem um ensaio porque falta-lhe a presença física e a imediatez) através da Internet. O “Pesadelo em Peluche”, por exemplo, é um disco que, sem as novas tecnologias, era impossível ter sido feito, porque nós, quando partimos para a feitura do disco, isto é, para a sua composição, tínhamos prazos muito curtos. Como se não bastassem os nossos afazeres, as nossas obrigações profissionais, que nos ocupam bastante tempo, pouco depois de termos iniciado as gravações do disco, o Miguel Pedro contraiu uma doença estranhíssima, que o obrigou a andar de médico em médico durante dois meses, numa tentativa de saber o que o impossibilitava de fazer o que quer que fosse. Portanto, assim, de repente, ficámos com o disco completamente pendurado, sem nada lhe podermos acrescentar, com os timings a correrem e os nossos compromissos – que, acima de tudo, são compromissos connosco próprios – em risco de serem quebrados. “Pesadelos em Peluche” foi, então, um disco que começou a ser feito em Janeiro, e que foi composto, gravado, escrito e mesmo misturado num prazo de um mês, sensivelmente até meados de Fevereiro, sem qualquer contacto prévio à sua gravação, sem qualquer ensaio. Tudo foi feito através da Internet, as próprias gravações foram feitas em casa e enviadas para o estúdio, que era no Porto, via Internet. Embora não pareça – quem o ouve fica com a ideia que o disco sofreu um grande trabalho de estúdio, um grande trabalho de maturação – “Pesadelos em Peluche” foi feito «com as sirenes todas ligadas». Praticamente nem nos cruzámos em estúdio. Foi um disco muito, muito, muito estranho, que tinha sido completamente impossível de fazer sem o recurso às novas tecnologias.

PP – Fernando Ribeiro, vocalista dos Moonspell, participa numa das faixas do álbum. O que motivou esta escolha?

ALC – Quando o Miguel me enviou o «esqueleto» do tema Como Um Vampiro e eu fiz a respectiva letra, chegámos ambos à conclusão rápida de que aquela música ficava bem com alguma voz, e que a do Fernando Ribeiro iria lá «cair que nem uma luva». Como já o conhecíamos – já tocámos juntos, já colaborámos num disco dos Moonspell, etc – apenas tivemos que lhe telefonar a convidá-lo. Mesmo sem saber de que música se tratava, ele aceitou imediatamente o convite. Bastou enviar-lhe o ficheiro e a letra, e pouco tempo depois tínhamo-lo no estúdio a gravá-la. E o resultado ficou óptimo, ainda melhor, até, do que tínhamos idealizado, pois o Fernando trouxe com ele algumas ideias. Ficou impecável.

PP – O que mudou com a ida para a Universal?

ALC – Este regresso a uma editora é, para nós, óptimo, porque liberta-nos de uma data de burocracias que têm que ser feitas, mas que nos ocupam muito tempo e exigem um grande investimento – um investimento físico, mental e monetário. A Universal já tem uma máquina montada, é uma salvaguarda que as coisas são bem feitas e que são eficazes.

PP – Continuarão, apesar do regresso à Universal, a tentar manter a carreira dos Mão Morta fora dos circuitos comerciais?

ALC – Nós temos o nosso percurso, temos a nossa história. Temos 25 anos de carreira e já conquistámos o nosso espaço, a nossa liberdade, já ninguém nos vem dizer o que devemos fazer ou como o devemos fazer, já não há qualquer tipo de pressão. Quando as pessoas «pegam» em nós, já sabem o que nós somos, não têm ilusões de nos mudar. Claro que com a Universal atingimos outros níveis de divulgação, mas não penso que seja pela divulgação que os Mão Morta se tornem mais ou menos mainstream. Podem, de facto, chegar a mais gente, mas não quer dizer que, por chegarem a mais gente, possam ser apreciados por mais gente.

PP – Em 2006 antecipou que a Internet, à semelhança do que aconteceu com a rádio nos anos 30/40, viria a transformar-se no maior aliado da indústria fonográfica, no momento em que esta a soubesse digerir. Quatro anos passados desde essas previsões, continua a partilhar a mesma opinião?

ALC – Sim, continuo. Em causa está uma revolução recente, cuja lógica ainda não está esgotada, cujo processo ainda está em curso, ainda não está controlado. Já podemos assistir a alguns processos de adaptação, mas estes ainda não estão totalmente estabilizados. Mas, mais cedo ou mais tarde, creio que o papel da Internet será o papel que pertenceu outrora à rádio: um papel ímpar de divulgação. Aliás, essa divulgação já existe, mas ainda não é possível objectivá-la, direccioná-la. Ainda é um pouco anárquica a Internet, hoje em dia. Ainda há muitas questões sem resposta, não só para as pessoas, como também para as indústrias. E, precisamente por causa dessa sua faceta anárquica, ela é vista como uma espécie de «papão», que possibilita que as músicas saiam da esfera controlada para serem descarregadas e circularem livremente. Mas, em termos gerais, a minha opinião mantém-se: a internet é a rádio do futuro.

PP – Confirma que as quebras de vendasàs quaisque se tem assistido em todo o mundo não têm afectado os Mão Morta?

ALC – Sim, confirmo. Quando caiu esta crise na indústria fonográfica, já tínhamos saído da Norte e Sul, com a qual vendemos cerca de dez mil discos. Já na Cobra, com o disco que se seguiu, ultrapassámos os dez mil. Portanto, por aí, não houve quebras. Depois, com discos mais estranhos, como o “Maldoror”, vendemos cerca de cinco mil e tal, salvo erro. E essa tendência manteve-se. Não posso dizer, portanto, que tenhamos sido afectados em termos de vendas, mesmo com os nossos álbuns disponíveis online para download gratuito. Pelo contrário, a Internet trouxe-nos uma grande vantagem: permitiu que a nossa música chegasse onde nunca tinha chegado. Neste momento, temos uma grande base de fãs no Brasil, graças à internet. Recebemos mails de pessoas em Espanha, mesmo não tendo nós nenhum disco editado lá. A Internet beneficiou muito mais os Mão Morta do que prejudicou. Aliás, nem prejudicou, só beneficiou.

PP – Olha com optimismo para o panorama musical português actual?

ALC – Em termos criativos, olho para o panorama musical português com optimismo. Não me refiro ao que é divulgado nos jornais, que está muito centralizado em Lisboa, mas àquilo que se faz fora de Lisboa, nomeadamente em Braga, Barcelos e Porto – que é aquilo que mais bem conheço. Acho que há cada vez mais gente a fazer música interessante, música actual. As coisas também estão mais fáceis, já não é necessária a complexidade dos estúdios do passado. Hoje em dia as pessoas têm novas ferramentas e com elas criam muito boa música urbana, rock, pop, etc. Contudo, há cada vez menos investimento nesta área. As pessoas têm medo de investir em música, pois, hoje em dia, investir em música é fazer um investimento de risco, no que respeita o retorno. Mas quero acreditar que isso seja um efeito derivado do momento particular que a sociedade portuguesa atravessa, em que a falta de dinheiro é generalizada.

PP – Curiosamente, todos os integrantes dos Mão Morta mantém uma carreira paralela à música. Porquê: por necessidade ou por convicção?

ALC – Essencialmente, por dois motivos. Por um lado, porque fazemos a música pelo prazer da música. Gostamos demasiado da música para fazer dela profissão. E quando gostamos demasiado de algo ou de alguém, não a queremos tornar numa «prostituta». E se vivêssemos da música, mais cedo ou mais tarde, mesmo que inconscientemente, iríamos transformá-la numa prostituta, porque precisaríamos de tirar dinheiro dela. Desta forma, é mais fácil: fazemos a música, se a música trouxer rendimentos, tudo bem, se não os trouxer, tudo bem na mesma, não precisamos deles, não são o nosso ganha-pão. Por outro, porque o facto de mantermos uma carreira paralela à música dá-nos uma liberdade de relacionamento com a matéria musical, com a criatividade musical que, de outra maneira, não existiria. Além disso, gostamos de estar fora da «bolha» dos músicos, da irrealidade que é a vida de músico. Ter outra profissão ajuda-nos nas relações do dia-a-dia, ajuda-nos a criar laços afectivos e profissionais com o mundo real, sendo que a música acaba por funcionar um pouco como o nosso quarto secreto dos brinquedos, onde purificamos as nossas prestações do quotidiano, as prestações de qualquer português assalariado, com falta de dinheiro, com incapacidade de ir mais longe profissionalmente. A música é a nossa fuga, é a nossa terapia.

PP – As primeiras partes de bandas estrangeiras constituem, como reafirmam na vossa página oficial, uma parte invejável do CV dos Mão Morta. Que bandas gostariam de adicionar ao vosso CV?

ALC – Uma banda que eu gostaria muito de acrescentar ao nosso curriculum seriam os Swans – mas tal é impossível. Gostaria muito de tocar com eles, até porque foram eles os nossos impulsionadores, a nossa primeira referência. À parte dessa, existem muitas outras bandas com as quais não me importava e até gostaria de conviver numa relação de banda de primeira parte, de parceiros num festival, mas os Swans, sem dúvida, seriam a principal.

PP – Depois da reedição dos primeiros quatro álbuns e do lançamento de um novo disco de originais, o que se segue para os Mão Morta?

ALC – Os planos dos Mão Morta são sempre um bocado imprevisíveis, mas, por acaso, até temos uma coisa pensada a curto prazo, que, aliás, já está a ser feita. Trata-se da edição de um documentário em vídeo, provavelmente também para exibição em salas.

PP – Um documentário bibiográfico?

ALC – Não se trata de uma mera biografia dos Mão Morta. Envolve outras histórias: histórias relacionadas com a existência dos Mão Morta, com a cidade de Braga, entre muitas outras histórias, que levam a outras histórias, e assim sucessivamente. Não é, portanto, uma história cronológica do grupo, mas sim um desencadear de diversos acontecimentos, diversos factos, quer visuais, quer factuais. Acaba por ser um retrato do que são os Mão Morta, do que foram os Mão Morta, e do que poderão vir a ser os Mão Morta – a súmula dos 25 anos dos Mão Morta.

PP – Em 25 inexpectáveis anos de carreira, que momentos se destacam?

ALC – Penso que os momentos mais marcantes estão associados ao início da carreira, uma vez que eram aqueles que surgiam de forma mais inesperada: a participação no Rock Rendez Vous em 86, onde ganhámos o prémio de originalidade; as primeiras notícias de imprensa, etc… Alguns concertos também me trazem óptimas recordações, nomeadamente o do Coliseu, há 11 anos atrás, as primeiras actuações no estrangeiro, o concerto do Theatro Circo de Braga, a estreia do “Maldoror”… Há muitos momentos, são muitos anos… Um momento inesquecível, por exemplo, foi uma actuação em Itália, ao ar livre, onde conseguimos, apesar do calor danado que se fazia sentir, encher o relvado, que se encontrava até então vazio, pois as pessoas optavam pela sombra. Antes de nós, já tinham tocado oito ou nove bandas e nenhuma tinha consigo fazer fosse quem fosse aproximar-se do palco. O facto de o termos conseguido – no final do concerto, o relvado estava completamente cheio e o calor abrasador mantinha-se - foi, para nós, um grande motivo de orgulho, na altura. Sentir esse concerto a crescer, as pessoas a aproximarem-se, o interesse a aumentar, segundo a segundo, foi fabuloso, foi incrível.

Sara Novais