Depois da medalha de mérito atribuída pela cidade de Lisboa, Maria Bethânia recebeu ontem à noite, no Coliseu dos Recreios, uma outra distinção, talvez mais importante que a institucional: o reconhecimento do público português por quase cinquenta anos de uma carreira atravessada pelo sucesso.

O concerto único da cantora brasileira em Portugal começou com um pedido de desculpas por um improvável atraso, seguindo-se a confidência para a atribuição de tão importante distinção por parte da Câmara de Lisboa: o seu amor pelos poetas portugueses e pelas damas literárias. O espectáculo foi um misto de música com a leitura de pedaços de poesia e prosa nascida nos dois lados do Atlântico e que nos unem mais do que qualquer acordo ortográfico.

A entrada no mundo de Bethânia fez-se pela porta da Igreja, com temas que falam de fé, de esperança e que respiram religiosidade: “Cio da Terra” e “Ave Maria do Morro”.

Depois das muitas rezas e das promessas lançadas aos deuses foi tempo de nos fazermos ao mar em ritmo de festa sambada com “Marinheiro só” e o português “Meu Amor é Marinheiro”. Pelo meio, homenagem a Sophia de Mello Breyner Andersen com o poema “Mar Novo”: “Que é feito daquele/ Para quem eu guardava um reino puro/ De espaço e de vazio/ De ondas brancas e fundas/ E de verde e frio?”.

Depois de atracados em bom porto no belo mês de Junho, foi tempo para tirar o carvão do saco, assar o peixe pescado e festejar, com grande pompa, os Santos Populares numa parceria luso brasileira: “Santo António”, do lado de lá, correspondido com Bethânia a cantar “Cheira Bem, Cheira a Lisboa”. Nova récita, desta vez celebrando a poesia de Álvaro de Campos em “Passagem das Horas”: “Seja como for a vida, de tão interessante que é a todos os momentos,/ a vida chega a doer, a enjoar, a cortar, a roçar, a ranger,/ a dar vontade de dar pulos, de ficar no chão,/ de sair para fora de todas as casas,/ de todas as lógicas, de todas as sacadas,/ e ir ser selvagem entre árvores e esquecimentos."

Entrámos depois no território natural de Bethânia, o do amor torturado, da dor amarga, do ciúme louco, do amor em estado de graça. “Que estranha forma de vida” – imortalizado pela voz de Amália Rodrigues – e “O Ciúme” marcaram o ritmo, a que seguiu um novo trecho literário saído da pena de Clarice Lispector: “Gosto dos venenos mais lentos, das bebidas mais amargas, das drogas mais poderosas, das idéias mais insanas, dos pensamentos mais complexos, dos sentimentos mais fortes… tenho um apetite voraz e os delírios mais loucos. Você pode até me empurrar de um penhasco que eu vou dizer: - E daí? Eu adoro voar!”

“Fonte”, “Eu Velejava em Você”, “Meu Primeiro Amor” fizeram a delícia dos muitos corações presentes no Coliseu, que entoaram com sentimento o clássico “João e Maria”.

“Quixabeira”, “Brisa” e “Todo o Sentimento” voltaram a trazer o ritmo de festa, que terminou com “Reconvexo” e um agradecimento de Bethânia a fazer lembrar a pose de Amália Rodrigues.

O encore foi servido com uma “Mensagem” única, trazida por um carteiro com ar de cupido. A cortina desce, os corações suspiram.

Pedro Miguel Silva