O fenómeno, inédito em concertos seus anteriores, poderá ser facilmente explicado não só pelo seu talento musical, mas também pelo recente Prémio Nobel da Literatura que lhe foi atribuído. Esta atribuição algo inédita gerou muita controvérsia mas, acima de tudo, muita curiosidade. Acredito que tenha sido a ponte para chegar a ainda mais público, atravessando gerações mais novas. Ainda ontem pensava, enquanto esperava sentada numa das laterais do Balcão 1, que quando Bob Dylan lançou o seu primeiro disco (em 1962) a minha mãe ainda estava para nascer. Já leva quase o dobro da minha idade só em anos de estrada. Não será então de estranhar que a média de idades dos presentes fosse já bem adulta, havendo ainda assim uns quantos presentes da minha geração e até mais novos. Com todas as luzes baixas e um silêncio expectante, aguardávamos o início do concerto.
“The Never Ending Tour” já conta com quase 3000 concertos e o reportório disponível é mais do que vasto, incluindo várias covers que toca com regularidade nos seus concertos. Só em 2017, Bob Dylan lançou Triplicate (um disco triplo) e ainda Trouble No More: The Bootleg Series, Vol. 13/1979-1981. Ainda assim, o alinhamento apresentado nesta noite em Lisboa foi semelhante ao dos concertos que havia dado em 2017.
Sentado ao piano grande parte da noite, Bob Dylan parece ter abandonado de vez a guitarra. Com uma voz que carrega em si décadas de experiências, amadurecida como qual vinho do Porto, o músico norte-americano mostrou-se sólido na sua atuação.
Cada música consegue conter toda uma narrativa dentro, evocando assim vários cenários e imaginários populados pelas suas personagens. Cada composição instrumental entrelaça-se com a letra, fazendo com que seja criada uma espécie de aura encantatória à volta de cada tema, uns com mais ritmo do que outros.
É também notável a capacidade metamorfósica de Bob Dylan em relação a algumas das suas canções. Quando se tem tantas décadas de carreira e se tocam as mesmas músicas dezenas/centenas de vezes, talvez o processo mais natural seja mesmo dar-lhes uma nova roupagem. Bob Dylan tem-no feito com frequência, sendo que por vezes a distância às originais se torna tão significativa que nem sempre as conseguimos reconhecer aos primeiros acordes, mas já só depois de o cantor adicionar a sua voz à música.
Bob Dylan acaba por abandonar o piano uma única vez, dirigindo-se para o centro do palco e dando-nos o prazer de ouvir “Why Try To Change Me Now”, quase em jeito de sonata, arrancando aplausos do público ainda o tema não tinha terminado. O concerto acabaria pouco depois, mas logo a banda voltaria para um pequeno, mas intenso encore.
Assisti pela a primeira vez a um concerto de Bob Dylan e confesso que estranhei a distância que se fez sentir entre o palco e o público e a ausência de interacção. Dado o género e até a emoção e comoção que a música de Bob Dylan consegue provocar, senti falta de uma intimidade que poderia tornar o concerto mais especial. A nível de execução, tirando alguns ajustes de som iniciais, correu tudo bem.
Uma coisa é certa, existe sempre uma espécie de fascínio quando estamos perante um artista como Bob Dylan. Fez da música a sua vida, acabando com isso por contribuir também para o cânone literário através das suas letras. Bob Dylan tornou-se, ao longo dos últimos 56 anos, uma espécie de instituição. Seja-se admirador ou não, é impossível não sentir um grande respeito pelo seu trajeto e a noite de ontem foi prova disso mesmo.
Alinhamento do concerto:
Things Have Changed
It Ain't Me, Babe
Highway 61 Revisited
Summer Days
Don't Think Twice, It's All Right
Melancholy Mood (Frank Sinatra cover)
Honest With Me
Simple Twist of Fate
Tryin' to Get to Heaven
Once Upon a Time (Tony Bennett cover)
Pay in Blood
Tangled Up in Blue
Soon After Midnight
Early Roman Kings
Spirit on the Water
Desolation Row
Autumn Leaves (Yves Montand cover)
Thunder on the Mountain
Why Try to Change Me Now (Cy Coleman Jazz Trio cover)
Love Sick
Encore:
Blowin' in the Wind
Ballad of a Thin Man
*O artista não autorizou a recolha de imagens do concerto
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