Escrito maioritariamente a partir de Lisboa, onde a escritora indiana vive há quatro anos com o marido, “A Idade do Vício” é simultaneamente uma saga familiar e uma história de máfia e de vingança, que mostra a corrupção numa época de extremos, que a autora testemunhou de perto enquanto jornalista em Nova Deli.

“Cinco sem-abrigo jazem mortos junto à Inner Ring Road de Deli. Parece o começo de uma piada de mau gosto”. Esta frase marca o arranque da história.

Numa madrugada fria de 2004, cinco sem-abrigo são colhidos por um Mercedes-Benz. Entre os mortos há uma grávida e o seu marido. Minutos mais tarde a polícia apanha o culpado, o motorista do carro, que conduzia embriagado e que, apesar de bem vestido, é de classe baixa.

Esse homem, chamado Ajay, foi vendido pelos pais, quando tinha 9 anos, para pagar uma dívida, cresceu na miséria e subiu a pulso, até se tornar o homem de mão de Sunny, herdeiro da poderosíssima família Wadia, através da qual se entra no outro lado da Índia, governada por uma classe corrupta, violenta, tentacular.

“Quis mostrar uma Índia que tem os extremos da vida a acontecer simultaneamente: há crueldade e violência, mas também bondade e calor, riqueza extrema e pobreza extrema. A Índia é um país de extremos e eu quis mostrar isso através da escrita”, disse a escritora, em entrevista à Lusa.

O romance navega sempre entre esses dois universos, os ricos e os pobres, mas também entre diferentes geografias, que vão de uma caótica Nova Deli ao interior rural dos destituídos, daqueles que nada têm.

A trama para a história foi tecida pela autora a partir de histórias que ouviu ou presenciou, de pessoas que conheceu, maioritariamente durante os anos em que trabalhou como jornalista, mas também a partir da sua própria vida social e o círculo em que se movia.

Por isso, costuma dizer que demorou quatro anos a escrever o livro, mas esteve 20 anos a construí-lo, desde o início do milénio.

“A Índia estava a mudar rápido, tivemos uma mudança de economia, de um modelo socialista para um capitalista, e isso começou no final anos 1990, mas as mudanças, os reflexos sentiram-se a partir de 2000, com novos empregos e oportunidades. De repente, era uma capital global”, recordou.

Na altura, era jornalista e o seu trabalho passava muito por sair pela cidade, ver o que se passava, voltar e escrever. Tinha liberdade, passou muito tempo a conduzir e a falar com pessoas e – admite - usava o jornalismo como pretexto para satisfazer a sua curiosidade e procurar respostas para as perguntas que fazia, enquanto testemunhava a cidade e o país em mudança.

“O romance vem desses anos a viver em Deli. Naquela altura, eu era jornalista de dia, mas ia a festas à noite com amigos que fiz nos tempos de escola, porque frequentei uma escola para pessoas ricas, embora a minha família não o fosse, para filhos de pessoas poderosas na Índia, políticos homens de negócios”.

Nessas festas “havia uma explosão de dinheiro, havia bares, restaurantes e clubes abertos, mas também grandes festas privadas em mansões, em Deli”, que frequentava, contou.

“Foi nesses anos que começou a despertar a minha curiosidade em relação a jovens rapazes que estavam sempre sossegados - podiam ser mordomos, motoristas, empregados - a servir toda a gente, muito silenciosos, mas atentos a todas as necessidades, sabiam exatamente o que cada pessoa queria, instintivamente, ainda antes de a própria pessoa saber o que queria”.

Nesta altura surgiram as suas primeiras inquietações: como seria a vida daqueles jovens, o que pensariam, se acreditariam que um dia poderiam ter outras oportunidades.

Mas foi em 2012, quando “houve um grande incidente na Índia, em que uma jovem foi violada e morta por um ‘gang’ num autocarro, que gerou protestos em toda a Índia e um enorme sentimento de vergonha” que a fez questionar sobre o que deveria ser o seu romance.

“Levou-me à pergunta: ‘por que é que isto aconteceu?’. Foi assim que segui o caminho de tentar perceber como o sistema funcionava. E o sistema funcionava de uma forma de compadrio entre elites, de capitalismo crónico, de poder, de abuso de poder. Então, foi uma questão de unir os pontos e cheguei à conclusão de que queria integrar tudo isto na minha escrita”.

Por isso, diz que o seu método de trabalho consiste em juntar histórias e construir personagens a partir de pessoas que conheceu.

“Eu coleciono histórias. A história de Ajay vem de um jovem que conheci nas minhas viagens. Quando tinha 30 anos, trabalhava como escritora de viagens ‘freelancer’ e andava pelas montanhas a fazer críticas de pequenos hotéis, e conheci um rapaz como Ajay numa pequena casa de hóspedes, nos Himalaias, que tinha sido mandado pela família para trabalhar. Ele estava sozinho, mas cheio de alegria e vida, apesar de ter uma história triste. Combinei a sua história com a dos homens que costumava ver a trabalhar nas mansões privadas em Deli. Foi assim que a história nasceu”.

O início de “A Idade do Vício” também é baseado em histórias reais de atropelamento na Índia, em que jovens muito ricos a conduzir de madrugada, normalmente muito bêbados, se envolvem em acidentes.

“Também há, infelizmente, muita gente a dormir no chão das ruas e muitas vezes há casos em que morrem no local, mas, por causa da forma como a sociedade funciona, os poderosos conseguem sempre escapar aos homicídios: o criminoso é retirado de cena, a família responsabiliza-se, as testemunhas são afastadas ou são subornadas”.

Nos seus 30 anos, Deepti Kapoor, agora com 42, mudou-se para Goa, deixou o jornalismo, tornou-se professora de ioga, casou-se, começou a ler muito e a explorar a ideia de escrever.

A vontade de vir para Portugal nasceu desses tempos, por Goa ser uma antiga colónia, ter uma arquitetura e muitos traços similares.

Casada com um britânico, já tinham a ideia de se mudar para a Europa e, assim, decidiram experimentar Lisboa, onde já tinham alguns amigos e conhecidos.

“Atualmente vivo nos Anjos, uma zona com muitas nacionalidades, muitos nepaleses, onde há restaurantes muito bons. Sinto-me como em casa, mas ao mesmo tempo é Lisboa. É uma boa mistura”.

“A Idade do Vício” vai ser publicado em 22 países, tendo sido editado em Portugal pela Lua de Papel. Este é o primeiro volume de uma trilogia (o segundo está a ser escrito), cujos direitos de adaptação para série de televisão já foram vendidos.