De acordo com a escritora Maria Quintans, a cerimónia fúnebre decorrerá naquele cemitério, onde o corpo será sepultado, com leituras de poemas em sua homenagem.

Manuel Cintra, autor de livros como "Do lado de dentro" e "Alçapão", morreu em casa, no Bairro Alto, onde residia sozinho, presumivelmente durante o fim de semana.

"Ele foi encontrado em casa sem vida na terça-feira", disse à Lusa a amiga do poeta que sofria há algum tempo de "graves problemas cardíacos".

Filho do linguista Luís Filipe Lindley Cintra e irmão do ator e encenador Luís Miguel Cintra, Manuel Cintra nasceu em Lisboa, em março de 1956.

Foi tradutor, jornalista, ator e encenador, sendo, no entanto, a poesia "a sua incontornável e apaixonada estrada", sublinhou a poeta e dramaturga Maria Quintans.

Manuel Cintra começou a publicar poesia em 1981, com o livro "Do Lado de Dentro", na Editorial Presença, a que se seguiram mais de duas dezenas de obras, destacando-se "Tangerina" (1990), "Borboleta" (2006), "Alçapão" (2009), "Marie" (2009), "Receber a Poeira" (2014), "Parto" (2014) ou "Peixa" (2016).

A editora Guilhotina publicou "Manobra Incompleta", em 2017, reunindo toda a poesia de Manuel Cintra.

"Geralmente escrevo o poema já pronto, quase sem correções. Faço os possíveis por não enlouquecer. Como sabemos, a poesia é uma arma, neste caso visceral. Sempre no limite. Sempre numa nova manobra. A evitar o acidente. Ou a vivê-lo a fundo", costumava dizer o escritor, citado por Maria Quintans.

Além de poeta, foi também tradutor e ator, tendo participado em várias produções do Teatro da Cornucópia, em particular, mas também do coletivo Maizum e do antigo Serviço de Animação, Criação Artística e Educação pela Arte (Acarte), da Fundação Calouste Gulbenkian.

Para o palco escreveu, por vezes em parceria, obras como "Conversa entre Um Contrabaixo e Uma Inquietação", "O Homem da Lua", "Rumor", "The little devil who came out of hell", "Conversa Surda" e "Bolero" (com José Carretas).

Com Maria Velho da Costa, traduziu "Que é feito de Betty Lemon?" e "Carta a uma filha", duas peças de Arnold Wesker, representadas, respetivamente, por Glicínia Quartin, no Centro Cultural de Belém, e pelo elenco do Teatro Nacional D. Maria II.

Entre outras obras, traduziu ainda "Casimiro e Carolina", de Ödön von Horváth, com Maria Amélia da Silva Melo, para o Teatro da Cornucópia.

Estreou-se nos palcos com o espectáculo "O diário de um louco", de Nicolai Gogol, no qual assinou a cenografia.

O Centro de Estudos de Teatro da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa lembra que Manuel Cintra fez também parte de elencos de peças como "Muito Barulho por Nada" e "Ricardo III", de Shakespeare, "O Túnel", de Pär Lagerkvist, "Erros Meus, Má Fortuna, Amor Ardente", de Natália Correia, "La prose du transsiberien et de la petite Jeanne de France", de Blaise Cendrars, "O Público", de Federico Garcia Lorca, "A Margem da Alegria", a partir de Ruy Belo.

Entrou em filmes e séries de televisão, como "Solo de Violino", de Monique Rutler, "O Sapato de Cetim", de Manoel de Oliveira, "Ruy Blas", de Jacques Weber, "Lagardére", de Henri Helman, "O Monólogo do Rei Vitorioso", de Frederico Corado.

Em 2013 levou ao Jardim de Inverno do Teatro São Luiz, em Lisboa, um espetáculo com as canções da francesa Barbara. "Foram talvez elas que primeiro me fizeram estremecer para as palavras, para a música, para o prazer da voz", lê-se na folha de sala que acompanhou a atuação.

Organizou espetáculos e sessões de divulgação da poesia de autores como Carlos Drummond de Andrade e Ruy Belo, além de se assumir como 'dizedor' dos seus próprios textos.

Escreveu sobre artes para o Diário de Lisboa, o Expresso e o Diário de Notícias.

Na sua página oficial no Facebook, multiplicam-se, desde que foi noticiada a sua morte, na quinta-feira, as homenagens e depoimentos de amigos, atores e autores, como André Gago, António Cabrita e Raquel Nobre Guerra, que recorda nele "uma inteligência séria, sincera e bruta capaz de tudo".

"Era quase tudo o que pomos de parte na vida real para depois nos refastelarmos com a ideia romântica disso. Liberdade de uma vida franca, não fictícia, aquela que inspira e agita mas que não cai bem neste meio século apatetado de sofredores de histeria sentimental e doméstica, passadores de visões e traduções ordinárias da vida, porcos, políticos, distraídos, confusos, descomprometidos, isentos, mesquinhos, maldosos, vaidosos deste país a meio", escreve a poetisa, autora de "Senhor Roubado".

Poemas inéditos de Manuel Cintra surgem também na sua página, datados das últimas semanas, como "Irritação" ("Eu era esse desenho animado ridículo, que descia a rua, embrulhado na merda da máscara, tão assassino como o vírus, a odiar estes tempos de catástrofe incerta") e "O vazio muito cheio" da "tristeza que se recebe sob a forma de alegria".

Num poema dedicado a Herberto Helder (1930-2015), o autor de "Passos em Volta", escreveu Manuel Cintra: "Há uma cama onde os poetas nunca dormem. Morrem, certo dia, prontos para nascer. Algumas pedras os escutam. Alguns dedos continuarão a escrever".