Simas Freire, mestre em arquitetura, flauta de bisel e corneta histórica, desdobra-se entre o trabalho como intérprete e como investigador, vetores que se conjugam no agrupamento Capella Sanctae Crucis, que editou no final de 2017 o disco “Zunguambé”, pela editora internacional Harmonia Mundi, a partir de uma recolha e transcrição de música portuguesa do século XVII, a partir dos arquivos do Mosteiro de Santa Cruz, em Coimbra.
Descrito como um laboratório de estudo e interpretação de polifonia portuguesa, criado em 2012, o grupo trabalha sobre a investigação do músico e do Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra, em colaboração com o Conservatório Superior de Lyon e a Universidade de Saint-Étienne.
A receção a “Zunguambé” tem “corrido muito bem”, depois de uma “sucessão de surpresas” no lançamento, com o disco produzido pelos próprios, que deixou a Harmonia Mundi “muito entusiasmada”, quando o recebeu, e que editou na coleção de novos talentos.
Com distribuição mundial, o grupo de 17 músicos fez chegar as composições inéditas a todo o planeta, e atuou em vários concertos, um de “sala cheia” na Igreja Matriz da Póvoa de Varzim, no Festival Internacional de Música daquela cidade, e múltiplas atuações em França.
“Num dos concertos, no final, conseguimos vender 60 cópias, foi completamente surpreendente. Sobretudo para este tipo de repertório. O século XVII é ainda um território [musical português] em grande parte desconhecido. Há alguns nomes, mas é muito isolado. Este disco vem iniciar uma vontade de preencher essa lacuna de falta de investigação e interpretação deste período”, acrescentou.
A vontade do investigador, cujo doutoramento visa exatamente a produção musical desta época, é que o trabalho possa ser “o mais completo possível, desde as fontes, no contacto com arquivos e manuscritos, ao estudo, contextualização e transcrição do repertório, até levar ao público o concerto, um processos que qualquer musicólogo anseia”.
Num ano 2018 recheado, um dos destaques é a edição de um segundo disco, já gravado, e que está “em pós-produção”, ainda sem editora ou data confirmada, dedicado a um “repertório mais antigo, do século XVI, também de Santa Cruz”.
Além do novo disco, há duas novas datas para “Zuguambé”, este ano, no Festival de Música Sagrada do Mundo, em Fez, Marrocos, e em França, em abril, um tónico que “dá energia para continuar o processo de descobrir novas fontes musicais portuguesas”.
O Mosteiro de Coimbra, de resto, é a casa de uma “extraordinária” biblioteca musical, alvo de “alguns estudos patrocinados pela Fundação Calouste Gulbenkian, nos anos 1980 e 1990”, mas de forma avulsa, e Simas Freire tem estudado “os manuscritos como um todo, para conseguir perceber o que são, para que serviam, e tentar contextualizar esta música e este som”.
Entre os cartapácios (coleção de manuscritos da época) dos cónegos existe ainda “muito repertório que parece ser vernacular e importante”, que inclui música para teatro e dança, o que se insere “naquilo que era o processo de evangelização jesuíta, muito através do palco”.
Outro dos projetos de Simas Freire e da Capella é uma residência de criação conceptual, na Fundação Royaumont, a primeira fundação cultural francesa privada, para a criação de “Dança dos Planetas: Música, Dança e Teatro no Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, c.1650”.
Desenhado para nove cantores, nove músicos e quatro bailarinos, o “diálogo entre música, teatro e dança” parte dos manuscritos dos monges e cónegos de Santa Cruz e é “uma espécie de incubação do projeto a concretizar em 2019”, num trabalho que vai envolver coreógrafos, atores, bailarinos e especialistas de várias áreas, com um foco em “atores que saibam cantar” e músicos que sejam multi-instrumentalistas.
Outra das características da música portuguesa do século XVII é o foco em temas “relativamente nacionalistas”, devido aos constantes períodos de conflito com Castela, com “características muito próprias”, antes da influência italiana que se verificou no século seguinte.
“Há uma identidade ibérica muito forte, porque, em termos culturais, apesar das guerras peninsulares, há uma unidade cultural muito grande, sobretudo no século XVII, com músicos espanhóis, cá, e portugueses, lá. Não há rutura cultural, antes pelo contrário”, contou o musicólogo, que adiantou que, em Espanha, há “muito mais estudos” sobre o período.
“A nossa vontade é criar uma espécie de carta dessa atividade musical em Santa Cruz”, explicou Simas Freire, que tem “a ideia de que a música transcrita na tese seja publicada”, entre outros manuscritos cuja transcrição está completa, num esforço para que haja informação contextualizada sobre a música portuguesa da época, aliada à sua interpretação sonora.
Comentários