Foi há 40 anos: a 1 de fevereiro de 1978, o realizador franco-polaco Roman Polanski apanhou um voo com destino a Londres e nunca mais voltou aos EUA, permanecendo até hoje um fugitivo à justiça do país.
Foi o desfecho de um caso que começara quase um ano antes, quando, a 11 de março de 1977, aos 43 anos, foi preso, acusado de, um dia antes, ter embebedado, drogado e violado Samantha Gailey, então com 13 anos, em casa de Jack Nicholson em Los Angeles (que estava fora), durante uma sessão fotográfica para a edição francesa da Vogue.
A América tinha simpatia por um homem que sobreviveu ao nazismo e se tornara um dos principais nomes do cinema na Polónia sucesso da sua primeira longa-metragem, "A Faca na Água" (1962) antes de fugir ao espartilho do regime comunista e partir para a França e depois para Inglaterra, onde teve logo um enorme sucesso com "Repulsa" (1965) e "Por Favor, Não Me Mordam o Pescoço" (1967). E recordava bem como, já nos EUA, após o enorme êxito logo do primeiro filme, "A Semente do Diabo"(1968), vira a tragédia voltar a bater-lhe à porta quando a sua esposa Sharon Tate foi barbaramente assassinada por Charles Manson no verão de 1969, num crime que deixou o país em estado de choque.
O escândalo da detenção foi enorme. Polanski era um dos mais conceituados realizadores do mundo. Estava no auge da popularidade por causa de "Chinatown" (1974). No entanto, com um relatório médico a descrever que "a vítima não só era fisicamente madura, mas estava recetiva" e citava dois psiquiatras que negavam que o realizador era pedófilo ou um pervertido sexual, o advogado da jovem, a pretexto de a proteger de um julgamento, propôs um acordo: ele deu-se como culpado de ter relações sexuais ilegais com uma menor e caíram as acusações de violação com uso de drogas, perversão, sodomia, ato lascivo sobre uma criança com menos de catorze anos e fornecimento de uma droga ilícita a uma menor.
Ainda no âmbito do acordo, Polanski tinha de se sujeitar a uma avaliação psiquiátrica de 90 dias numa prisão antes de receber uma condenação. Foi autorizado a terminar a rodagem de "Tess" na Europa e, quando regressou, cumpriu 42 dias de prisão antes de ser libertado com a expectativa de receber uma pena suspensa e ficar em liberdade condicional. Só que constou que o juiz Laurence J. Rittenband pretendia anular o acordo e fazer dele "um exemplo", preparando-se, alegadamente, para lhe dar uma pena até 50 anos de prisão: o realizador não esperou para ter a certeza e apanhou o avião.
Roman Polanski: Procurado e Desejado
O juiz diria mais tarde que achava que a sentença apropriada era cumprir o que faltava de uma pena de 90 dias e depois ser deportado, mas o mal estava feito. De regresso à Europa, Roman Polanski prosseguiu uma sólida carreira, viajando essencialmente para países onde o risco de extradição para os EUA era improvável, como a Alemanha, a República Checa e a Polónia. Fez "Frenético" (1988), "Lua de Mel, Lua de Fel" (1992) ou "A Noite da Vingança" (1994), atingindo o ponto alto em 2002 com "O Pianista", que venceu a Palma de Ouro em Cannes e lhe valeu o Óscar de Melhor Realização, que naturalmente não foi receber a Hollywood.
Por essa altura, Samantha Gailey, entretanto com o apelido alterado para Geimer, deu uma entrevista em que recordava o sucedido (Polanski sempre negou, incluindo na autobiografia, ter dado drogas e diz que as relações forem consensuais), mas pedia aos tribunais norte-americanos para deixarem cair o caso: "Não há dúvida que o que ele me fez foi errado. Mas desejo que ele pudesse voltar à América para que todo este doloroso processo possa acabar para todos nós», acrescentando que "estou certa de que se ele pudesse regressar, não voltaria a fazer o que fez. Ele cometeu um erro terrível mas já pagou por ele".
O mesmo ponto de vista era expresso em "Roman Polanski: Procurado e Desejado", um documentário de 2008 que, utilizando imagens de arquivo tanto dos media como sobre a vida de Polanski antes das acusações, cenas dos seus filmes da época e entrevistas com alguns dos intervenientes – advogados, vítima e amigos e colegas – investigava o escândalo e a tragédia privada do realizador.
Agora com 84 anos, casado com a atriz Emmanuelle Seigner, com quem tem dois filhos, o cineasta recusou sempre regressar aos EUA sem garantias de que não será posto novamente atrás das grades, mas a justiça americana nunca esqueceu e sempre desenvolveu todos os esforços para o extraditar.
O mais espetacular episódio trouxe o caso de regresso à frente mediática quando, a 26 de setembro de 2009, à chegada ao aeroporto de Zurique, onde ia receber um prémio honorário num Festival, Polanski foi detido pelas autoridades. A Suíça tinha um acordo de extradição com os EUA e o cineasta enfrentou pela primeira vez a séria possibilidade de ser extraditado: esteve detido 67 dias e passou nove meses em prisão domiciliária no seu chalé em Gstaad, à espera da decisão judicial, onde terminou a pós-produção de "O Escritor Fantasma", com Pierce Brosnan e Ewan McGregor.
Na altura, recebeu o apoio de várias individualidades de Hollywood e da Europa e as autoridades acabaram por rejeitar o pedido de extradição, apesar de várias sondagens indicarem que a maioria da opinião pública nos EUA, Polónia e França era a favor da extradição.
Já em outubro de 2014, as autoridades americanas solicitaram ao governo polaco que detivesse o realizador quando este estava a visitar o país no âmbito da abertura de um museu judaico em Varsóvia. Interrogado por procuradores em Cracóvia, ficou em liberdade. E o tribunal regional "concluiu pela irreversibilidade do pedido de extradição", decisão que o Supremo Tribunal da Polónia manteve em dezembro de 2016, declarando que Polanski tinha cumprido a sua pena segundo o acordo dos anos 70, contrariando um apelo do ministro da Justiça polaco.
2017, o ano de velhos fantasmas e novas acusações
Se dúvidas existissem de que Roman Polanski já não era visto com a mesma tolerância também na Europa, houve um acontecimento bastante esclarecedor em 2017: Polanski foi forçado a desistir de presidir em fevereiro à cerimónia dos César, os "Óscares franceses", onde faria os discursos de abertura e encerramento, após a indignação de vários setores, um abaixo-assinado e o anunciado boicote de várias associações feministas, que definiram a escolha como um gesto "indigno para com as muitas vítimas de violações e agressões sexuais". Isto aconteceu, vale a pena salientar, mais de dez meses antes antes de os movimentos #MeToo e Time's Up terem colocado em causa muitas personalidades nos EUA pelo seu comportamento com as mulheres.
Também no ano passado, o realizador renovou os esforços para tentar regressar aos EUA, desde que tivesse garantias de não ser preso, mas isso foi recusado pela justiça, apesar dos renovados apelos de Samantha Geimer para que fosse encontrada uma solução "sem prender um homem de 83 anos", depois de no passado ter chegado a acusar a comunicação social, o tribunal e o juiz encarregues do caso de lhe terem causado mais danos do que Roman Polanski.
Já em agosto, uma mulher, identificada apenas como Robin, indignada com o apelo de Geimer para que o seu caso fosse arquivado, disse numa conferência de imprensa em Los Angeles que foi uma "vítima sexual" quando tinha 16 anos, em 1973. E pouco depois foi recordado que, em maio de 2010, a atriz Charlotte Lewis acusou-o de violação quando tinha 16 anos, antes da rodagem de "Os Piratas" (1986).
Já em outubro, inspiradas pelo #MeToo, a antiga modelo e atriz Renate Langer apresentou queixa por uma alegada violação na cidade de Gstaad em fevereiro de 1972, quando tinha 15 anos, e a artista Marianne Barnard recordou que Polanski lhe tirou fotografias nua numa praia em Malibu antes de a violar quando tinha 10 anos, em 1975. As acusações foram rejeitadas pelos advogados do realizador.
No mesmo mês, uma retrospetiva na Cinemateca Francesa foi recebida com protestos e até tentativas de invasão.
E Polanski? Numa entrevista rara ainda em outubro ao The Hollywood Reporter, ironicamente no regresso ao Festival de Cinema de Zurique, o mesmo que levara à sua detenção em 2009, aceitou abordar o caso que o acompanha há décadas.
"Há mais de 30 anos que Samantha Geimer anda a pedir para isto acabar. Mas lamento que os juízes que lidaram com isto nos últimos 40 anos estivessem corrompidos, um a proteger o outro. [...] Não sei, talvez um deles acabe por parar de o fazer. Em relação ao que fiz: está acabado. Dei-me como culpado. Fui para a prisão. Regressei aos EUA para cumprir [a pena], as pessoas esquecem-se disso ou não sabem sequer. Depois fui preso aqui [na Suíça] após este festival. Portanto, tudo somado, fiz quatro ou cinco vezes o que me foi prometido", explicou.
Confirmando estar bem consciente dos danos ao legado, ainda deixou escapar que era "lamentável" que os seus filmes agora sejam vistos pelo filtro do que aconteceu em 1977 e do escândalo que chegou até aos nossos dias...
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