Não deixa de ser incrível como uma cidade tão misteriosa e antiga como Lisboa não seja um cenário permanente de fantásticas histórias. A pouca tradição da literatura de género "fantástico" (fantasia, terror, ficção científica) é uma explicação aceitável – um cenário que algumas editoras de diferentes proporções têm vindo a tentar modificar nos últimos anos.

Uma delas é a Saída de Emergência, que teima, mesmo sem serem estes os produtos que a viabilizam comercialmente, em publicar literatura de género. Desta feita, foi o seu próprio editor, Luís Corte Real, quem arregaçou as mangas e lançou-se a escrita. O resultado saiu melhor do que qualquer previsão: fluído, bem escrito, cheio de ação – um enorme convite a bons momentos pelo passado de uma das cidades mais antigas da Europa.

Pelo caminho, Corte Real inventou o “detetive do oculto” Benjamim Tormenta – um ser misterioso que circula tanto pelos palácios quanto pelo submundo da capital portuguesa – beneficiando de um enorme trabalho de reconstituição que tem Eça de Queiroz como guia. Como “recompensa”, o grande escritor aparece como personagem num dos sete contos interligados que compõem o livro.

Um dos aspetos para o qual chamou a atenção na apresentação do livro foi o de que o Benjamim Tormenta seria o primeiro “detetive do oculto” da literatura portuguesa...

Segundo o Luis Filipe Silva, autor do prefácio, é o primeiro detetive do oculto em Portugal. O que é estranho porque ele é uma figura tradicional, emblemática no género fantástico. Existem milhares de “detetives do oculto” – para além da literatura há na banda desenhada, no cinema, na televisão. Portugal tem pouca tradição no fantástico e no terror, não tinha o seu detetive.

Este foi o personagem sobre o qual eu queria escrever. Faltava só escolher uma época para ele viver. Para mim havia duas fascinantes – a da Lisboa de Eça de Queirós, no século XIX, e a do “pulp”, de Lovecraft, pelos anos 20. Acabei por optar pela oitocentista, mas ainda tenciono ir também ao mundo dos “pulps”.

Foi Eça de Queirós, um autor de ficção, que serviu como base para a sua pesquisa...

Eu pesquisei em tudo, nos livros de ficção e não ficção. No caso de Eça, tentei inclusive buscar um pouco do seu estilo – embora não se consiga reproduzir – afinal ele era um génio. Mas eu adoro descrições e com ele é possível conhecer penteados, chapéus, maneirismos, mobílias, paisagens, cavalos.

Depois complementei com outras fontes para conhecer teatros, igrejas, museus, monumentos – tudo isso vai dando munição para uma Lisboa verídica. Também fiz pesquisas sobre o submundo, aquelas locais que Eça não frequentava – mas Benjamim Tormenta sim.

O seu livro acaba por ser uma ponte entre os clássicos e os jovens. Há dias na Feira do Livro do Porto falava-se que Júlio Dinis era um autor descoberto cedo demais pelas pessoas...

Sim, podia ser uma maneira interessante de apresentar o Eça aos mais jovens. Os miúdos hoje são imaturos, leem menos e pior, têm pouco calo literário. E estar a dar autores como Eça ou Camões é assassinar os autores.

Aquilo é chato, descritivo, fala de coisas que não lhes dizem nada. Nunca mais na vida vida vão pegar neles e me surpreende que ainda não tenham se dado conta disto. Não se pode empurrar-lhes do “Banana” para o Eça. Ninguém dá esse salto. Mais valia pô-los a ler Harry Potter e, mais tarde, sim, eles podiam aproximar-se dos antigos.

Não esconde o entusiasmo por criar novas histórias para o Benjamim Tormenta... Mencionou que já tem o segundo volume praticamente escrito.

Sim, tenho ideia de desenvolver vários volumes - enquanto eu tiver vontade e boas histórias para contar. Até finais de outubro devo ter terminado de escrever o segundo volume – que vai contar com um autor surpresa convidado – na velha tradição dos “pulps”.

Desta vez o enredo vai situar-se no Porto de Júlio Dinis – e também terá um longo conto passado no Egito inspirado no livro de Eça sobre o país. Em outros livros gostaria de levar o Tormenta a Constantinopla do século XIX, a Londres, ao Rio de Janeiro, aos Açores. E até à Amazónia, algo meio Indiana Jones.

Claro que, para isso, tenho que ter leitores, não adianta escrever para mim mesmo. Até agora o “feedback” que tenho recebido na Feira tem sido bastante positivo. Se correr bem eu gostaria de publicar um livro do Tormenta por ano.

Edita livros há muitos anos e agora decidiu-se lançar-se como autor. Na apresentação também falou em falta de disciplina como o obstáculo que veio a superar para escrever...

Eu nunca pensei que conseguisse. Eu tenho 47 anos, sou um leitor compulsivo há 40 anos. Meu sonho de infância não era ser jogador ou astronauta, era ser escritor. Mas eu tentava e não conseguia. Não faltava imaginação ou jeito, o problema era a disciplina.

Eu lia livros grandes com regularidade, cheios de pesquisa, e pensava ‘onde vão buscar força’? Então num livro do Mark Manson (“A Arte Subtil de Saber Dizer que se F*da”) contava-se de um escritor extremamente prolixo – e perguntara-lhe como ele conseguia. Ele respondeu que escrevia apenas 200 palavras por dia e, no final do ano, tinha um livro escrito. Foi o que passei a fazer e percebi que a disciplina realmente conquista-se até se transformar num processo orgânico.

O deus das moscas tem fome

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