Romances que relatam a provação de prisioneiros políticos convivem com textos de teologia islâmica radical: a literatura clandestina que costumava ser comercializada às escondidas é exibida livremente nas livrarias de Damasco, na Síria.

Amr al Laham, um estudante de 25 anos, encontrou um livro que procurava há muito tempo, "Al Maabar" [A Passagem], no qual a guerra em Aleppo é narrada a partir de uma passagem de fronteira que ligava os bairros do leste da cidade, controlados por rebeldes armados, aos bairros do oeste, controlados pelo governo.

Passeando com o seu irmão pelas livrarias próximas da Universidade de Damasco, ele conseguiu comprar livros que antes eram proibidos.

“Se tivesse perguntado sobre um livro há 60 dias, teria desaparecido e acabado na prisão”, disse o jovem.

“Antes, tínhamos medo de que os serviços secretos nos rotulassem como sufistas, salafistas ou esquerdistas por causa de alguma compra”.

A queda de Bashar al-Assad em 8 de dezembro por uma coligação de grupos armados liderados por islamistas colocou fim a meio século de reinado absolutista do clã familiar.

Qualquer dissidência foi impiedosamente reprimida, as liberdades públicas foram amordaçadas pelas agências de segurança que aterrorizavam a população e torturavam os oponentes detidos.

Para muitos sírios, persistem as preocupações com o futuro, que eles esperam que seja democrático.

Enquanto isso, o presente de Damasco está livre da segurança omnipresente em cada esquina, num país dilacerado pela guerra civil desde 2011.

Literatura das prisões

Um homem vê obras numa livraria em Damasco em 26 de janeiro de 2025.

Nas paredes ao longo das calçadas ou nas lojas, estão a reaparecer títulos anteriormente disponíveis apenas em versões piratas ou na Internet.

Há “A casa da minha tia” - uma expressão do dialeto sírio que significa prisão -, um romance do iraquiano Ahmed Khairi Alomari, ou “A Concha”, do sírio Mustafa Khalifa, que narra os anos de detenção de um ateu confundido com um islamista radical na prisão de Tadmor.

“A literatura na prisão era totalmente proibida”, disse o livreiro Abu Yamen, que está na casa dos 50 anos.

“Antes, as pessoas não se atreviam a perguntar, sabiam qual era a sua posição”, justifica.

O proprietário de uma editora de prestígio concordou em falar sobre os altos e baixos do negócio sob condição de anonimato.

Desde a década de 1980, ele retirou todas as obras políticas do seu catálogo, com exceção de alguns ensaios “de pensamento político muito geral, que não tratam de uma região ou país em particular”.

“Apesar disso, os serviços de segurança convocavam-nos para interrogar sobre o nosso trabalho e as nossas vendas, quem tinha vindo ver-nos, o que tinham comprado, o que o público estava a pedir”, lembrou.

“Quando se tratava de literatura, eles eram os mais incultos”, brincou o editor, contando a história de um investigador que exigiu que Ibn Taymiyya, uma figura central do fundamentalismo sunita que morreu no século XIV, fosse convocado no dia seguinte.

Nas prateleiras na entrada da sua livraria, Abdel Rahman Suruji organizou livros encadernados em couro, com os seus títulos caligrafados em letras douradas: escritos por Ibn Qayyim al-Jawaziyya, teólogo muçulmano da Idade Média e ideólogo do salafismo, ou Sayyed Qotb, um dos principais teóricos da Irmandade Muçulmana e inspiração para esse movimento radical.

“Todos estes livros foram proibidos, vendíamos em segredo, apenas para pessoas da nossa confiança”, disse à agência France-Presse o livreiro de 62 anos.

Hoje, ele alegra-se com a “grande procura”.

Os seus novos clientes incluem moradores de Damasco, sírios que regressam do exterior e outros de antigos redutos rebeldes no norte.